terça-feira, 30 de setembro de 2014

As Cores de Maria

As cores de Maria

 Roberta Brumer Munhoz
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Conheci uma menina que tinha no nome uma cor: Rosa, mas não era apenas Rosa e um sobrenome, era Maria Rosa e um sobrenome que não me recordo agora, mas ela sempre dizia o nome completo. Aos seis aninhos, ela pulava, brincava e sorria o tempo todo, tipo comercial de gel dental, sabe? Faltava-lhe um dentinho, na arcada superior, mas pensa que ela ligava? Não estava nem aí! Eu a encontrava quase todas as tardes, quando levava o Carlinhos no parquinho do condomínio… E lá estava eu, conversando com a pequena Rosita, foi assim que a apelidei. Numa tarde especialmente ensolarada, ela sentou-se próximo aos meus pés, com seu baldinho vermelho, onde carregava uma pazinha azul e um rastelo amarelo. Começou a esculpir seu castelinho. De cabeça baixa, sem me dizer nada, riu-se da cor das minhas unhas, que parecia algo entre areia e pérola. Curiosamente, nem eu sei, de que cor se trata. — pensei incrédula.
Assim como quem não quer nada, começou o seu pequeno discurso. E quem disse que criança não discursa? Elas são mestres no assunto, porém, livres de ideologias, demagogias e outros recursos normalmente utilizados pelos adultos. Conversamos sobre as mais fantásticas histórias: como a da Branca de Neve, sua personagem favorita. De tanto falar na princesa, ela parou, pensou e tascou a seguinte pergunta: — Tia Lúcia, por que as pessoas gostam mais de umas cores do que de outras?
Antes que pudesse, sei lá, formular qualquer resposta plausível, que fosse:
— o mar, por exemplo: é verde, é azul. — continuou ela, ainda de olho no castelo. Deu uma pausa, olhando pro nada e prosseguiu: — o céu: fica azul claro, azul escuro e quando chove —, olhando para o céu — fica tudo nublado. —Como se nublado fosse cor. — Pensei, sorrindo afirmativamente.
Creio que a professora devia estar ensinando as cores, e de uma forma muito peculiar, por que ela estava decidida pelo assunto.
— As flores. — Disse ela, apontando para o roseiral — têm de todas as cores, não é? — Lançou-me mais uma.
Até aí, acho que contei umas três, não sei se conseguirei agrupar tudo quando ela terminar. Acho que na próxima, vou trazer um bloquinho ou coisa parecida.
— Sim! — Respondi meio zonza.
Neste instante, o Carlinhos abriu o berreiro, estava na hora de levá-lo para o seu quarto “azul bebé”, acho.
— Vou colocar o bebé para dormir, certo? — disse, dando uma piscadinha, e saí rapidamente.
Acho que a “Rosita” não gostou muito, mas balançou a cabeça positivamente. Ela é muito esperta para idade dela e não raras vezes me coloca em apuros. Nem imagino o que a garotinha, quer dessa vez. Pelo que sei, ela mora com os pais e a avó. Quando a mãe retorna ao trabalho depois do almoço, ela desce pro parquinho e sua avó fica da janela, observando ela brincar. De vez em quando, ela apita como se estivesse em um jogo de futebol, quando outra criança comete uma falta em cima da Rosita ou vice-versa.
No dia seguinte, choveu muito e o Carlinhos, não pôde ir ao parquinho, e nos dias que sucederam, ele pegou um resfriado, e eu também. E lá se foram uns oito ou nove dias até que o bebé melhorou, e fomos ao parquinho novamente. Era um dia comum, sem muito sol, nem chuva; umas nuvenzinhas aqui, outras ali, nada demais. O Carlinhos no carrinho balbuciando algumas palavrinhas: mamã, tetê, papá, e por aí vai. De repente, uma joaninha vermelha, com pintinhas pretas, pousou suavemente na pontinha do meu nariz. Fiquei vesga, por uma fração de segundos, e ela se foi; não sei se ficou com medo ou se deu uma paradinha pra descansar um tiquinho e seguiu viagem.
Tirei meu tênis e comecei a cutucar a areia, massageando os pés, relaxando e devaneando. Observando as crianças e suas brincadeiras. Algumas brincavam no parquinho, outras de pega-pega, uns três menininhos
jogavam gude, e bem no cantinho do enorme quadrado do parque, entre um banquinho e o roseiral, estava a menininha. Ela parecia estar chorando, ou tinha chorado ainda há pouco.
— Rosita, Rosita — chamei-a em bom tom. Ela levantou os olhos, e continuou cabisbaixa. —Será que está chateada comigo? — pensei. Continuei divagando sobre minha infância, e de como era difícil me relacionar com as outras crianças. Primeiro, por que mudei de cidade com meus pais, e lá se foram meia dúzia de amigos. Depois, por que recordo mais claramente como as outras crianças me rejeitavam. Não sei se era por causa do meu jeitinho, da minha aparência ou do meu sotaque. O fato é que fui me fechando como uma borboletinha em seu casulo, e de lá custei a sair.
Já estava quase na hora de subir com o Carlinhos, quando senti ao meu lado, um perfume de flores bem delicado. Levantei a cabeça e eis que na minha frente estava minha pequena amiga.
— Olá! — disse sorrindo.
— Oi! — disse ela, meio sem graça!
Expliquei os motivos pelos quais não nos víamos há alguns dias, e ela meio que levantou as sobrancelhas e mordeu os lábios, como se estivesse desapontada. Olhou para trás, sentou-se meio de lado e pôs-se a fazer e desfazer montinhos de areia.
— E a nossa conversa sobre as cores, lembra? — Perguntei curiosa.
— Sim! Mais ou menos… A vovó gosta de verde, e você? — perguntou encabulada.
— Eu gosto de todas as cores, mas em especial, da vermelha e da preta. — respondi, entusiasmada.
— Por que as pessoas não gostam da amarela? — disse exasperada.
Se outra pessoa me fizesse a mesma pergunta, a resposta seria simples e precisa tipo: Algumas pessoas gostam, outras não; ou então: umas podem não gostar da amarela, outras da azul e assim sucessivamente. Mas ela não era tão objetiva, eu precisava descobrir o porquê da AMARELA em seu questionamento. Será que ela acredita que a avó passa protetor solar nela, por que o sol é amarelo ou coisa assim, e que por isso ela deve tomar cuidado com ele? Agora acho que fui eu que entrei no mundo da imaginação.
— E por que você acha que as pessoas não gostam da amarela? — perguntei como quem não quer nada.
— Por que todos os dias alguém me chama de menina amarela, e ninguém quer brincar comigo. — disse num desabafo, quase chorando. De longe, a avó não ouvia essas brincadeirinhas de mau gosto, e não sabia que a menina vinha sofrendo esse tipo de “violência”. No tempo da vovó, violência era algo como bater, puxar os cabelos; tortura era algo mais físico, que psicológico. Imagine uma criança de seis anos, sendo torturada por outras crianças quase da mesma idade, sem que nenhuma delas tenha plena consciência do que está fazendo ou sofrendo? Certo que, tecnicamente bons modos se aprendem em casa e começam bem antes desta fase.
— Você não é amarela, quem disse isso queria apenas te chatear. — Afirmei categórica. — Sabe, quando eu era pequena , assim como você, com meus cabelos vermelhos e minha pele branquinha, cheia de pintinhas; colocavam-me apelidos que também me deixavam muito triste e… — Mas ninguém te chamava de amarela. —Ela interrompeu, quase chorando. — De amarela não, mas me chamavam de vela branca e de enferrujada; isso também me deixava muito triste e às vezes eu ficava muito sozinha e não queria nem brincar.
Ao mesmo passo em que tentava consolá-la, fui reencontrando aquela menina tímida e insegura, quase sem amigos, que não tivera uma oportunidade de expor seus sentimentos. Por isso, esses “pequenos” problemas da infância, acabaram me acompanhando até a adolescência. Pude ver refletido nos olhos marejados da pequena, uma menininha triste e infeliz que só saiu da minha cabeça com muita insistência e ajuda profissional. Não acho que a Maria Rosa, precise esperar vinte anos para ser feliz novamente.
Então comecei: — Você não mencionou ainda qual a sua cor favorita, não é mesmo?
— AMARELA — disse ela, parando de súbito, com o seu castelo. — E… Às vezes, azul. Mas prefiro mesmo a AMARELA. — reafirmando as sílabas.
— Deve ser por isso que a Branca de neve é a sua princesa favorita, não?
— Disse em tom de brincadeira— Ambas rimos!
— Na verdade… —comecei olhando bem no fundo dos olhinhos atentos da menina.— …Sou muito feliz com a cor dos meus cabelos e até gosto das pintinhas, acho que elas me dão um charme especial. Cada pessoa tem seu próprio jeito de ser e vestir. Quando imagino que seria muito estranho se fôssemos todos iguais e nos vestíssemos da mesma forma, não teria muita graça não é mesmo?
— Éh! Acho que não mesmo. — Disse já sem aquele peso no olhar. — O que não quer dizer, que por gostarmos de uma determinada cor, devamos vestir roupas, sapatos e acessórios sempre daquela cor. — Completei.
Naquele momento, um apito muito estridente, nos chamou a atenção, ao olharmos na direção do som, era a avó da menina, agora gesticulando insistentemente, chamando-a para entrar. Ela levantou-se, sacudiu seus apetrechos de construção de castelos e subitamente tascou-me um beijo no rosto, correndo ao encontro da avó, que pareceu questioná-la sobre o assunto que estávamos conversando.
No dia seguinte, o Pedrinho tinha uma consulta pediátrica de rotina. Logo na chegada verifiquei que havia uns quatro pequenos pacientes aguardando atendimento: uma menina de uns três aninhos, que vestia um conjuntinho verde e branco; duas menininhas que aparentavam ter uns cinco ou seis anos: ambas de cor de rosa, e outra que vestia blusa branca, saia jeans e sandália amarela. Essa última, de costas, contava uma história de princesa para os demais, que pareciam muito interessados. A menina olhou para trás, quando a recepcionista a chamou pelo primeiro nome: Maria. Disse que a médica já aguardava por ela. Só então percebi que se tratava da “Menina Amarela”, agora bem mais à vontade com as outras cores. Ela não percebeu que estava sendo observada, despediu-se dos coleguinhas e de mãos dadas com a mãe, entrou para sua consulta, toda sorridente.
Por fim, ela gostava tanto de amarelo que praticamente não usava outra cor. Isso era prova de sua personalidade, mas também causava estranheza nas outras crianças do condomínio, que vendo ela usar tudo em tons de amarelo, apelidaram-na de: menina amarela.

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