terça-feira, 21 de outubro de 2014

A Fuga

A FUGA

            Mal colocou o papel na máquina, o menino começou a empurrar uma cadeira pela sala, fazendo um barulho infernal.
            - Para com esse barulho, meu filho - falou, sem se voltar.
            Com três anos, já sabia reagir como homem ao impacto das grandes injustiças paternas: não estava fazendo barulho, só estava empurrando uma cadeira.
            - Pois então para de empurrar a cadeira.
            - Eu vou embora - foi a resposta.
            Distraído, o pai não reparou que ele juntava ação às palavras, no ato de juntar do chão suas coisinhas, enrolando-as num pedaço de pano, era sua bagagem: um caminhão de plástico com apenas três rodas, um resto de biscoito, uma chave (onde diabo meteram a chave da despensa? a mãe mais tarde irá saber), metade de uma tesourinha enferrujada, sua única arma para a grande aventura, um botão amarrado num barbante.
            A calma que baixou então na sala era vagamente inquietante. De repente o pai olhou ao redor e não viu o menino. Deu com a porta da rua aberta, correu até o portão:
            - Viu um menino saindo desta casa? - gritou para o operário que descansava diante da obra, do outro lado da rua, sentado no meio-fio.
            - Saiu agora mesmo com uma trouxinha - informou ele.
            Correu até a esquina e teve tempo de vê-lo ao longe, caminhando cabisbaixo ao longo do muro.
            A trouxa, arrastada no chão, ia deixando pelo caminho alguns de seus pertences: o botão, o pedaço de biscoito e - saíra de casa prevenido - uma moeda de um cruzeiro. Chamou-o mas ele apertou o passinho e abriu a correr em direção à avenida, como disposto a atirar-se diante do ônibus que surgia à distância.
            - Meu filho, cuidado!
            O ônibus deu uma freada brusca, uma guinada para a esquerda, os pneus cantaram no asfalto.
            O menino, assustado arrepiou carreira. O pai precipitou-se e o arrebanhou com o braço como um animalzinho:
            - Que susto você me passou, meu filho - e apertava-o contra o peito comovido.
            - Deixa eu descer, papai. Você está me machucando.
            Irresoluto, o pai pensava agora se não seria o caso de lhe dar umas palmadas:
            - Machucando, é? Fazer uma coisa dessas com seu pai.
            - Me larga. Eu quero ir embora.
            Trouxe-o para casa e o largou novamente na sala - tendo antes o cuidado de fechar a porta da rua e retirar a chave, como ele fizera com a da despensa.
            - Fique aí quietinho, está ouvindo? Papai está trabalhando.
            - Fico, mas vou empurrar esta cadeira.
            E o barulho recomeçou.

FERNANDO SABINO

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