quarta-feira, 13 de maio de 2015

                                


                             Cobrança - Moacyr Scliar
Ela abriu a janela e ali estava ele, diante da casa, caminhando de um lado para outro. Carregava um cartaz, cujos dizeres atraíam a atenção dos passantes: "Aqui mora uma devedora inadimplente".
Você não pode fazer isso comigo ― protestou ela.
Claro que posso ― replicou ele. ― Você comprou, não pagou. Você é uma devedora inadimplente. E eu sou cobrador. Por diversas vezes tentei lhe cobrar, você não pagou.

Não paguei porque não tenho dinheiro. Esta crise...
Já sei ― ironizou ele. ― Você vai me dizer que por causa daquele ataque lá em Nova York seus negócios ficaram prejudicados. Problema seu, ouviu? Problema seu. Meu problema é lhe cobrar. E é o que estou fazendo.
Mas você podia fazer isso de uma forma mais discreta...
Negativo. Já usei todas as formas discretas que podia. Falei com você, expliquei, avisei. Nada. Você fazia de conta que nada tinha a ver com o assunto. Minha paciência foi se esgotando, até que não me restou outro recurso: vou ficar aqui, carregando este cartaz, até você saldar sua dívida.
Neste momento começou a chuviscar.

― Você vai se molhar ― advertiu ela. ― Vai acabar ficando doente. Ele riu, amargo:
― E daí? Se você está preocupada com minha saúde, pague o que deve.
― Posso lhe dar um guarda-chuva...

Não quero. Tenho de carregar o cartaz, não um guarda-chuva. Ela agora estava irritada:
Acabe com isso, Aristides, e venha para dentro. Afinal, você é meu marido, você mora aqui.
Sou seu marido ― retrucou ele ― e você é minha mulher, mas eu sou cobrador profissional e você é devedora. Eu avisei: não compre essa geladeira, eu não ganho o suficiente para pagar as prestações. Mas não, você não me ouviu. E agora o pessoal lá da empresa de cobrança quer o dinheiro. O que quer você que eu faça? Que perca meu emprego? De jeito nenhum. Vou ficar aqui até você cumprir sua obrigação.

Chovia mais forte, agora. Borrada, a inscrição tornara-se ilegível. A ele, isso pouco importava: continuava andando de um lado para outro, diante da casa, carregando o seu cartaz.
O imaginário cotidiano. São Paulo: Global, 2001

ATIVIDADES
 
1 - O narrador é observador ou personagem?
2  - Qual o foco narrativo da crônica?
3 - Existe algum elemento surpresa no texto? Qual?
4 - Que aspectos do cotidiano são narrados? 
5 - É possível localizar o conflito? Comente sobre ele.
6 - Qual o desfecho do texto?
7 - Observe que nesta crônica a mulher não tem um nome. É apenas mulher do cobrador e devedora. Em sua opinião, por que isso acontece?
8 - As personagens nesse texto desdobram-se em seus papéis: marido/mulher; cobrador/devedora. É possível dizer que há uma reflexão acerca dos diferentes papéis que os sujeitos sociais exercem. Que reflexão seria esta?
9 - O cronista escreve com recursos bastante interessantes, de forma que a crônica deixa de ser "descartável", adquirindo um sabor literário. Identifique estes recursos e comente sobre eles.

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