terça-feira, 16 de agosto de 2016



A modorra
Um dia Pedrinho enganou Dona Benta que ia visitar o tio Barnabé, mas em vez disso tomou o rumo da mata virgem de seus sonhos. Nem o bodoque levou consigo. “Para que bodoque, se levo o saci na garrafa e ele é uma arma melhor do que quanto canhão ou metralhadora existe?”
Que beleza! Pedrinho nunca supôs que uma floresta virgem fosse tão imponente. Aquelas árvores enormes, velhíssimas, barbadas de musgos e orquídeas; aquelas raízes de fora dando ideia de monstruosas sucuris; aqueles cipós torcidos como se fossem redes; aquela galharada, aquela folharada e sobretudo aquele ambiente de umidade e sombra, lhe causaram uma impressão que nunca mais se apagou.
Volta e meia ouvia um rumor estranho, de inambu ou jacu a esvoaçar por entre a folhagem, ou então, de algum galho podre que tombava do alto e vinha num estardalhaço — brah, ah, ah… — esborrachar-se no chão.
E quantas borboletas, das azuis, como cauda de pavão; das cinzentas, como casca de pau; das amarelas, cor de gema de ovo!
E pássaros! Ora um enorme tucano de bico maior que o corpo e lindo papo amarelo. Ora um pica-pau, que interrompia o seu trabalho de bicar a madeira de um tronco para atentar no menino com interrogativa curiosidade.
Até um bando de macaquinhos ele viu, pulando de galho em galho com incrível agilidade e balançando-se, pendurados pela cauda, como pêndulos de relógio.
Pedrinho foi caminhando pela mata adentro até alcançar um ponto onde havia uma água muito límpida, que corria, cheia de barulhinhos mexeriqueiros, por entre velhas pedras verdoengas de limo. Em redor erguiam-se as esbeltas samambaiaçus, esses fetos enormes que parecem palmeiras. E quanta avenca de folhagem mimosa, e quanto musgo pelo chão!
Encantado com a beleza daquele sítio, o menino parou para descansar. Juntou um monte de folhas caídas; fez cama; deitou-se de barriga para o ar e mãos cruzadas na nuca. E ali ficou num enlevo que nunca sentira antes, pensando em mil coisas em que nunca pensara antes, seguindo o voo silencioso das grandes borboletas azuis e embalando-se com o chiar das cigarras.
De repente, notou que o saci dentro da garrafa fazia gestos de quem quer dizer qualquer coisa.
Pedrinho não se admirou daquilo. Era tão natural que o capetinha afinal aparecesse…
— Que aconteceu que está assim inquieto, meu caro saci? — perguntou-lhe em tom brincalhão.
— Aconteceu que este lugar é o mais perigoso da floresta; e que se a noite pilhar você aqui, era uma vez o neto de Dona Benta…
Pedrinho sentiu um arrepio correr-lhe pelo fio da espinha.
— Por quê? — perguntou, olhando ressabiadamente para todos os lados.
— Porque é justamente aqui o coração da mata, ponto de reunião de sacis, lobisomens, bruxas, caiporas e até da mula-sem-cabeça. Sem meu socorro você estará perdido, porque não há mais tempo para voltar para casa, nem você sabe o caminho. Mas o meu auxílio eu só darei sob uma condição…
— Já sei, restituir a carapuça — adiantou Pedrinho.
— Isso mesmo. Restituir-me a carapuça e com ela a liberdade. Aceita?
Pedrinho sentia muito ver-se obrigado a perder um saci que tanto lhe custara a apanhar, mas como não tinha outro remédio senão ceder, jurou que o libertaria se o saci o livrasse dos perigos da noite e pela manhã o reconduzisse, são e salvo, à casa de Dona Benta.
— Muito bem — disse o saci. — Mas nesse caso você tem de abrir a garrafa e me soltar. Terei assim mais facilidade de ação. Você jurou que me liberta; eu dou minha palavra de saci que mesmo solto o ajudarei em tudo. Depois o acompanharei até o sítio para receber minha carapuça e despedir-me de todos.
Pedrinho soltou o saci e durante o resto da aventura tratou-o mais como um velho camarada do que como um escravo. Assim que se viu fora da garrafa, o capeta pôs-se a dançar e a fazer cabriolas com tanto prazer que o menino ficou arrependido de por tantos dias ter conservado presa uma criaturinha tão irrequieta e amiga da liberdade.
— Vou revelar os segredos da mata virgem — disse-lhe o saci — e talvez seja você a primeira criatura humana a conhecer tais segredos. Para começar, temos de ir ao “sacizeiro” onde nasci, onde nasceram meus irmãos e onde todos os sacis se escondem durante o dia, enquanto o sol está fora. O sol é o nosso maior inimigo. Seus raios espantam-nos para as tocas escuras. Somos os eternos namorados da lua. É por isso que os poetas nos chamam de filhos das trevas. Sabe o que é trevas?
— Sei. O escuro, a escuridão.
— Pois é isso. Somos filhos das trevas, como os beija-flores, os sabiás e as abelhas são filhos do Sol.
Assim falando, o saci levou o menino para uma cerrada moita de taquaraçus existente num dos pontos mais espessos da floresta.
Pedrinho assombrou-se diante das dimensões daqueles gomos quase da sua altura e grossos que nem uma laranja de umbigo.
(LOBATO, Monteiro. O saci

Vocabulário
Modorra: vontade incontrolável de dormir.
Bodoque: arco com duas cordas e uma rede (malha) ou couro em que se põe a bola de barro, pedra ou chumbo, com
que se atira. Também conhecido como estilingue.
Virgem: intacto, puro; diz-se da mata que ainda não foi explorada.
Inambu e jacu: espécies de ave.
Taquaraçu: espécie de bambu.
Pilhar: Agarrar, pegar.
1. Após capturar o Saci, Pedrinho enganou Dona Benta e foi para a mata. Diz o texto que o menino não levou sequer o bodoque. Segundo seus conhecimentos sobre esse ser lendário, explique por que o menino acreditava que o Saci era a melhor arma existente.
Pedrinho acreditava que o Saci possuía poderes mágicos e que poderia ajudá-lo em uma situação de risco.
 2. Pedrinho surpreendeu-se pela imponência, pela grandiosidade daquela floresta. Por que essa mata virgem impunha sua importância? O que ela tinha de diferente de outras florestas?
A mata visitada por Pedrinho ainda não havia sido explorada pelo homem, não havia qualquer interferência humana , permanecendo com sua estrutura intacta.
 3.No texto narrativo, há o momento em que se tem a apresentação, o início dos acontecimentos. Quais são os fatos que indicam a situação inicial do texto?
Os fatos que correspondem a situação inicial são quando Pedrinho engana Dona Benta e vai para a mata virgem.
 4. O que Pedrinho fazia no momento em que notou que o Saci dentro da garrafa parecia querer dizer alguma coisa?
O menino estava deitado, descansando.
 5. No início da conversa entre o Pedrinho e o Saci, aquele falava em um tom brincalhão. O que o Saci disse para que Pedrinho ficasse assustado? Explique o motivo do medo do menino.
O saci afirmou que ali era o ponto mais perigoso da floresta , pois estavam bem no coração da mata, lugar em que outros seres lendários habitavam .
 6. Saci ofereceu ajuda para livrar Pedrinho dos perigos da noite e levá-lo de volta para casa. Qual foi a condição estabelecida para que isso acontecesse
Pedrinho deveria devolver a carapuça ao Saci, bem como a liberdade dele.
 7. Segundo o texto, Pedrinho soltou o Saci e durante o resto da aventura tratou-o mais como um velho camarada do que como um escravo.” O que significa tratar alguém como um velho camarada? E como um escravo?
Tratar alguém como um velho camarada é o mesmo que tratar a um amigo, com respeito, com brincadeiras e com certa intimidade. Já tratar a um escravo e exigir que se cumpram determinados trabalhos, dar ordens e fazer com que estas sejam cumpridas.
 8. O Saci é chamado no texto de “capeta”. Por que ele recebeu esse apelido?
Saci levou esse apelido por ser muito sapeca, fazer muitas travessuras .
 9. O primeiro lugar a que o Saci levaria Pedrinho seria o sacizeiro. Como e onde era esse lugar?
Era uma cerrada moita de taquaraçus  num dos pontos mais espessos da floresta.
 10. De acordo com o desfecho desse texto, Pedrinho chegou a ver algum outro Saci, que não o que estava com ele? Qual foi a reação do menino nesse trecho?
O menino não chega a ver outro Saci, apenas sente-se assombrado por estar naquele lugar em que esses seres nascem.
 11. Releia os trechos a seguir e indique a quem corresponde a fala.
a) “’Para que bodoque, se levo o saci na garrafa e ele é uma arma melhor do que quanto canhão ou metralhadora existe?”
Corresponde a fala de Pedrinho.
b) “Que beleza!”
Corresponde a fala do narrador.
c) “E pássaros!”


Corresponde a fala do narrador.

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