segunda-feira, 24 de outubro de 2016

KING KONG X MONA LISA – Olga Savary

 


A primeira coisa que dele teve foi a ameaça de sua morte. Uma ameaça através de seus guinchos, gaitadas, pios, rugidos, uivos, assobios, da algaravia por ele usada para a sedução. Era possível um ser tão esta obsessão pela morte?
Ela acha que o amou desde o primeiro momento, embora não esse amor, esse seu sim à vida ao saber-lhe a ex-futura morte, e esse se dar tanto, o se dar todo, até demais. Era possível, tão exclusivista, amar dando assim, tão selvagem, tão espontâneo, se dando a todos: um crucificar. Imaginou ser ele o mar para não sofrer. Por ser o mar de todos e assim, que outro jeito teria senão aceitar um tal requintado primitivo.
Um amor sem quase nada de particular, forte e violento, mas quase impessoal, algo de amplo, sem espaço ou tempo, como por um mito ou coisa arquetípica. Amor seria isso? Então era isso amar? Amor não era. Era é paixão. A paixão não lhe era estranha, antes velha companheira. Mas a paixão com tal violência a assustava um pouco, como antes o medo da vida, ainda que não mais agora. E a paixão era um tanto trágica. Assim a aceitava: com esforço, com dor, mas também com gozo.
Caça ou caçador, quem era? Aparentemente era ele o caçador, com tantos meneios mais a sedução, a estanha tensão de não poder passar tempo sem tocá-la. Era uma impossibilidade não tocá-la — dizia ele — saber-lhe levemente a pele, a quentura e o morno da carne pressionada para mais tarde conhecer coisas mais rudes e tensas. Era ele o caçador. Mas quem lançou senão ela o que deflagrou tudo, uma distraída provocação sensual sobre as coxas de Pelé? Nem ela soube se teria sido intencional, mas falou assim, de como eram belas as coxas de Pelé, o que o intrigou. Como tão grande timidez deixava escapar tal insolência?
Não se teria sabido o esplêndido animal que era à falta deste esplêndido animal que via agora e que, à primeira vista, a ameaçava e se ameaçava para ela com a proximidade passada de sua morte. E essa morte não vista, apenas entrevista, já passada, era a grande ameaça para que ela conhecesse sua real vida e quem ela realmente era a partir do conhecimento dessa fera.
King Kong — ela pensou —, vou chamá-lo assim, assim vou chamar a fera que me dará vida, como uma nova mãe-terra, a força animal até então desconhecida, a força primeira que, tomada nos dentes como o seu bocado primevo, a faria florescer e aceitar a vida com seus jogos, seus acertos e armadilhas. O perigo? E, era o perigo. Mas também a vida, a vida com suas espadas, seu cheiro acre e álacre, seu bafo feroz e comovente.
De uma vez que lhe dissera o nome que secretamente lhe dava, houve o espanto: mas não combina com você, que é minha Mona Lisa. Ela sorriu sem dizer nada, pensando: mas é de você que falo. Como fazê-lo entender? E era preciso? Uma fera é uma fera – e pronto. Nada de fazê-lo entender o que ele é. King Kong. Claro que era uma insolência. Só que agora fazia parte do jogo. Era tão fácil perceber. Não tinha ele só a maciez da polpa, também possuía as unhas. Mais que isso: as garras. A boca não era só um fruto do mato, toda polpa, úmida e abrangente, toda língua. Era também dentes, as presas afiadas, esplêndidas mandíbulas.
Um ser amorável essa fera, mas também de aguda crueldade e um tanto sádico, seu corpo marcado a fogo (o da paixão) como as reses que têm dono: dois K ardiam-lhe na anca. Poderia ela amar uma tal mistura de prazer e de perigo? Mas já era impossível retroceder. Seduzida pela fera, já não podia reconquistar a si mesma. Agora que sabia seu corpo através do outro. Era a guerra, a paz dos abismos e da beira do desfiladeiro dos que nascem do furor da paixão, do lamber de sua língua rubra. king Kong: o êxtase e o horror. Rodeado mandacarus, de cactos.

Cem_melhores_contos_brasileiros_do_século_-_Italo_Moriconi 

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