O Flagelo do Vestibular
Não tenho curso superior. O que eu sei foi a vida que me ensinou, e como eu
não prestava muita atenção e faltava muito, aprendi pouco. Sei o essencial, que
é amarrar os sapatos, algumas tabuadas e como distinguir um bom Beaujolais pelo
rótulo. E tenho um certo jeito — como comprova este exemplo — para usar frases
entre travessões, o que me garante o sustento. No caso de alguma dúvida maior,
recorro ao bom senso. Que sempre me responde da mesma maneira? "Olha na
enciclopédia, pô!"
Este naco de autobiografia é apenas para dizer que nunca tive que passar pelo martírio de um vestibular. É uma experiência que jamais vou ter, como a dor do parto. Mas isto não impede que todos os anos, por esta época, eu sofra com o padecimento de amigos que se submetem à terrível prova, ou até de estranhos que vejo pelos jornais chegando um minuto atrasados, tendo insolações e tonturas, roendo metade do lápis durante o exame e no fim olhando para o infinito com aquele ar de sobreviventes da Marcha da Morte de Batan. Enfim, os flagelados do unificado. Só lhes posso oferecer a minha simpatia. Como ofereci a uma conhecida nossa que este ano esteve no inferno. — Calma, calma. Você pode parar de roer as unhas. O pior já passou.
— Não consigo. Vou levar duas semanas para me acalmar.
— Bom, então roa as suas próprias unhas. Essas são as minhas...
— Ah, desculpe. Foi terrível. A incerteza, as noites sem sono. Eu estava de um jeito que calmante me excitava. E quanto conseguia dormir, sonhava com escolhas múltiplas, a) fracasso, b) vexame, c) desilusão. E acordava gritando, NENHUMA DESTAS! NENHUMA DESTAS! Foi horrível.
— Só não compreendo porque você inventou de fazer vestibular a esta altura da vida...
— Mas quem é que fez vestibular? Foi meu filho! E o cretino está na praia enquanto eu fico aqui, à beira do colapso.
Mãe de vestibulando. Os casos mais dolorosos. O inconsciente do filho às vezes nem tá, diz pra coroa que cravou coluna do meio em tudo e está matematicamente garantido. E ela ali, desdobrando fila por fila do gabarito. Não haveria um jeito mais humano de fazer a seleção para as universidades? Por exemplo, largar todos os candidatos no ponto mais remoto da floresta amazônica e os que voltassem à civilização estariam automaticamente classificados? Afinal, o Brasil precisa de desbravadores. E as mães dos reprovados, quando indagadas sobre a sorte do filho, poderiam enxugar uma lágrima e dizer com altivez:
— Ele foi um dos que não voltaram...
Em vez de:
— É um burro!
Os candidatos à Engenharia no Rio de Janeiro poderiam ser postos a trabalhar no Metrô dia e noite, quem pedisse água seria desclassificado. O Estado acabaria com poucos engenheiros novos — aliás, uma segurança para a população — mas as obras do Metrô progrediriam como nunca. Na direção errada, mas que diabo.
O certo é que do jeito que está não pode continuar. E ainda por cima, há os cursinhos pré-vestibulares. Em São Paulo os cursinhos estão usando helicópteros na guerra pela preferência dos vestibulandos que terão que repetir tudo no ano que vem. Daí para o napalm, o bombardeio estratégico, o desembarque anfíbio e, pior, uma visita do Kissinger para negociar a paz, é um pulo. Em São Paulo há cursinhos tão grandes que o professor, para se comunicar com as filas de trás, tem que usar o correio. Se todos os alunos de cursinhos no centro de São Paulo saíssem para a rua ao mesmo tempo, ia ter gente caindo no mar em Santos. O vestibular virou indústria. E os robôs que saem das usinas pré-vestibulares só tem dois movimentos: marcar cruzinha e rezar.
O filho da nossa nervosa amiga chegou em casa meio pessimista com uma das provas.
— Sei não. Acho que tubulei. O Inglês não estava mole.
Mas meu filho, hoje não era inglês! Era Física e Matemática!
— Oba! Então acho que fui bem.
Disponível em:
http://a-neurose.blogspot.com/2010/01/cronica-lfv-o-flagelo-do-vestibular.html
II - Apresentar também informações sobre o autor:
Luis Fernando Verissimo nasceu em 26 de setembro 1936, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Filho do grande escritor Érico Veríssimo, iniciou seus estudos no Instituto Porto Alegre, tendo passado por escolas nos Estados Unidos quando morou lá, em virtude de seu pai ter ido lecionar em uma universidade da Califórnia, por dois anos. Voltou a morar nos EUA quando tinha 16 anos, tendo cursado a Roosevelt High School de Washington, onde também estudou música, sendo até hoje inseparável de seu saxofone.[...] Disponível em: http://www.releituras.com/lfverissimo_bio.asp
II – O professor deverá fazer a leitura oral do texto para os alunos, fornecendo a eles informações sobre as palavras e expressões – abaixo relacionadas - que são empregadas no texto.
Marcha da Morte de Bataan- é o nome como ficou conhecido um dos maiores crimes de guerra da II Guerra Mundial, ocorrido no início da Guerra do Pacífico, contra prisioneiros norte-americanos e filipinos derrotados pelas forças japonesas após a Batalha de Bataan, parte da Batalha das Filipinas, ocorrida entre dezembro de 1941 e abril de 1942.
Disponível em:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Marcha_da_Morte_de_Bataan
Napalm - é um conjunto de líquidos inflamáveis à base de gasolina gelificada, utilizados como armamento militar. O napalm é na realidade o agente espessante de tais líquidos, que quando misturado com gasolina a transforma num gel pegajoso e incendiário.
Disponível em:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Napalm
Henry Alfred Kissinger (nascido Heinz Alfred Kissinger; Fürth, 27 de maio de 1923) é um diplomata estado-unidense, de origem judaica, que teve um papel importante na política estrangeira dos Estados Unidos entre 1968 e 1976.
Disponível em:
http://www.google.com.br/search?hl=pt-BR&rlz=1W1SUNC_pt-BR&defl=pt&q=define:Kissinger&sa=X&ei=CYCTTOKaLML68AahvtWMDA&ved=0CBUQkAE
II - Após a leitura do texto, os alunos, em grupo, deverão responder às questões propostas na sequência.
1. Uma crônica humorística visa basicamente o riso, com certo registro irônico dos costumes.
A crônica lida pode ser considerada humorística. Por quê?
2. O que significa flagelo? Por que o vestibular pode ser considerado um flagelo?
3. A crônica “O flagelo do vestibular” é escrita em primeira pessoa.
Transcreva do segundo parágrafo do texto, uma expressão que comprove que o narrador é o próprio autor, isto é, o autor fala de si mesmo.
4. O autor inicia a crônica dizendo que não tem curso superior.
a. Ele lamenta esse fato? Justifique sua resposta.
b. Não ter cursado uma universidade faz falta a ele? Justifique sua resposta.
5. Apesar de não enfrentado um vestibular o autor sofre junto com amigos que tem filhos vestibulandos.
a. A que ele compara o vestibular?
b. A opinião do autor sobre o vestibular é positiva ou negativa? Explique.
6. Observe esta passagem do texto:
"E quanto conseguia dormir, sonhava com escolhas múltiplas, a) fracasso, b) vexame, c) desilusão. E acordava gritando, NENHUMA DESTAS! NENHUMA DESTAS! Foi horrível.” Qual é o conhecimento prévio necessário ao leitor para compreender este trecho do texto?
7. “O inconsciente do filho às vezes nem tá, diz pra coroa que cravou coluna do meio em tudo e está matematicamente garantido.”
Explique o que se pode deduzir da expressão em destaque.
8. Observe esta passagem do texto:
"Não haveria um jeito mais humano de fazer a seleção para as universidades? Por exemplo, largar todos os candidatos no ponto mais remoto da floresta amazônica e os que voltassem à civilização estariam automaticamente classificados? Afinal, o Brasil precisa de desbravadores.”
O que se pode inferir da sugestão irônica do autor para o processo seletivo para as universidades?
9. Assinale a(s) alternativas em que constam estratégias linguísticas responsáveis pelo humor da crônica. Dê um exemplo do texto para cada alternativa marcada.
( ) As comparações, os exageros, os paradoxos são explorados em seu aspecto mais original para divertir o leitor.
( ) O autor utiliza a ironia para criticar o vestibular no Brasil, assim a indústria dos cursinhos pré-vestibulares.
10. Discuta com os colegas e responda:
a. O processo seletivo de ingresso à universidade – o vestibular- é injusto? Por que? Vocês concordam com o autor?
b. O humor é uma estratégia para criticar a realidade? Justifique.
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