Os Lusíadas
Luis Vaz de Camões
Apresentação da matéria a ser cantada: os feitos dos navegadores portugueses, em especial os da esquadra de Vasco da Gama e a história do povo português.
2. Invocação (Canto I, Estrofes 4 e 5)
O poeta invoca o auxílio das musas do rio Tejo, as Tágides, que irão inspirá-lo na composição da obra.
3. Dedicatória (Canto I, Estrofes 6 a 18)
O poema é dedicado ao rei Dom Sebastião, visto como a esperança de propagação da fé católica e continuação das grandes conquistas portuguesas por todo o mundo.
4. Narração (Canto I, Estrofe 19 a Canto X, Estrofe 144)
A matéria do poema em si. A viagem de Vasco da Gama e as glórias da história heróica portuguesa.
5. Epílogo (Canto X, Estrofes 145 a 156)
Grande lamento do poeta, que reclama o fato de sua "voz rouca" não ser ouvida com mais atenção.
Episódio de Inês de Castro
(Canto III, estrofes 118 a 135)
Passada esta tão próspera vitória,
Tornado Afonso à Lusitana Terra,
A se lograr da paz com tanta glória
Quanta soube ganhar na dura guerra,
O caso triste e dino da memória,
Que do sepulcro os homens desenterra,
Aconteceu da mísera e mesquinha
Que despois de ser morta foi Rainha.
O rei Afonso voltou a Portugal, depois da vitória contra os mouros, esperando obter tanta glória na paz quanto obtivera na guerra. Então aconteceu o triste e memorável caso da desventurada que foi rainha depois de ser morta, assassinada.
Tu, só tu, puro Amor, com força crua,
Que os corações humanos tanto obriga,
Deste causa à molesta morte sua,
Como se fora pérfida inimiga.
Se dizem, fero Amor, que a sede tua
Nem com lágrimas tristes se mitiga,
É porque queres, áspero e tirano,
Tuas aras banhar em sangue humano.
O Amor, somente ele, foi quem causou a morte de Inês, como se ela fosse uma inimiga. Dizem que o Amor feroz, cruel, não se satisfaz com as lágrimas, com a tristeza, mas exige, como um deus severo e despótico, banhar seus altares ("aras") em sangue humano: requer sacrifícios humanos.
A palavra "pérfido", na obra, geralmente se refere aos Mouros inimigos. Nesse verso, parece indicar que Inês foi morta com a mesma crueldade que se usava contra eles.
Estavas, linda Inês, posta em sossego,
De teus anos colhendo doce fruito,
Naquele engano da alma, ledo e cego,
Que a Fortuna não deixa durar muito,
Nos saudosos campos do Mondego,
De teus fermosos olhos nunca enxuito,
Aos montes insinando e às ervinhas
O nome que no peito escrito tinhas.
Inês estava em Coimbra, sossegada, usufruindo ("colhendo doce fruito") da felicidade ilusória ("engano da alma, ledo e cego") e breve ("Que a Fortuna não deixa durar muito") da juventude. Nos campos, com os belos olhos úmidos de lágrimas de amor, repetia o nome do seu amado aos montes (para cima, para o alto) e às ervas (para baixo, para o chão).
As formas "fruito" e "enxuito" são variantes de "fruto" e "enxuto". Durante muito tempo, enquanto a Língua Portuguesa se solidificava, essas variantes foram utilizadas simultaneamente. A Língua Portuguesa acabou por definir "fruto" e "enxuto" como a forma culta.
Na época de Camões, palavras como despois, fruito, enxuito e escuito eram as mais usadas. Ele, então, prefere estas formas para se adequar à estrutura poética de Os Lusíadas - a oitava rima -, formada por versos decassílabos (heróicos ou sáficos), e respeitar o sistema rítmico dos versos - abababcc. Portanto, fruito (verso 2) e enxuito (verso 6) são as rimas cabíveis a muito (verso 4). Estas formas arcaicas ainda são utilizadas em muitas regiões.
Do teu Príncipe ali te respondiam
As lembranças que na alma lhe moravam,
Que sempre ante seus olhos te traziam,
Quando dos teus fermosos se apartavam;
De noite, em doces sonhos que mentiam,
De dia, em pensamentos que voavam;
E quanto, enfim, cuidava e quanto via
Eram tudo memórias de alegria.
As lembranças do Príncipe respondiam-lhe, em pensamentos e em sonhos, quando ele estava longe. Isto é, a memória do amado fazia com que Inês conversasse com ele, quando este estava ausente. Ambos não se esqueciam um do outro e se "comunicavam" através da memória, em forma de pensamentos e sonhos. Assim, tudo quanto faziam ou viam os fazia felizes, porque lembravam dos respectivos amados.
Esta estrofe é bastante ambígua. As lembranças do Príncipe vinham à mente de Inês como resposta aos seus cuidados amorosos; por outro lado, as mesmas lembranças, agora de Inês, existiam (moravam) na alma do príncipe quando estava longe da amada. Os sonhos e os pensamentos dos versos 5 e 6, dois modos de lembranças, pertencem indistintamente ao amado e à amada. E o sujeito de cuidava e via, no verso 7, tanto pode ser ela quanto o Príncipe.
De outras belas senhoras e Princesas
Os desejados tálamos enjeita,
Que tudo, enfim, tu, puro amor, desprezas,
Quando um gesto suave te sujeita.
Vendo estas namoradas estranhezas,
O velho pai sesudo, que respeita
O murmurar do povo e a fantasia
Do filho, que casar-se não queria,
O Príncipe se recusa a casar com outras mulheres (tálamo: casamento, leito conjugal) porque o amor despreza, rejeita tudo que não seja o rosto do amado (gesto significa rosto, semblante) a quem está sujeito. Ao ver este estranho amor, este comportamento estranho de não querer se casar, o pai sisudo (sério, grave) atende ao murmurar do povo e...
Tirar Inês ao mundo determina,
Por lhe tirar o filho que tem preso,
Crendo c'o sangue só da morte ladina
Matar do firme amor o fogo aceso.
Que furor consentiu que a espada fina,
Que pôde sustentar o grande peso
Do furor Mauro, fosse alevantada
Contra hûa fraca dama delicada?
... decide matar Inês, para que o filho seja libertado do seu amor. O pai acredita que só o sangue da morte apagará o fogo do amor. Que fúria foi essa que fez com que a espada cortante que afrontara o poder dos Mouros fosse levantada contra uma frágil e indefesa mulher?
Traziam-na os horríficos algozes
Ante o Rei, já movido a piedade;
Mas o povo, com falsas e ferozes
Razões, à morte crua o persuade.
Ela, com tristes e piedosas vozes,
Saídas só da mágoa e saudade
Do seu Príncipe e filhos, que deixava,
Que mais que a própria morte a magoava,
O poema se organiza tradicionalmente em cinco partes:
1. Proposição (Canto I, Estrofes 1 a 3)
1. Proposição (Canto I, Estrofes 1 a 3)
Apresentação da matéria a ser cantada: os feitos dos navegadores portugueses, em especial os da esquadra de Vasco da Gama e a história do povo português.
2. Invocação (Canto I, Estrofes 4 e 5)
O poeta invoca o auxílio das musas do rio Tejo, as Tágides, que irão inspirá-lo na composição da obra.
3. Dedicatória (Canto I, Estrofes 6 a 18)
O poema é dedicado ao rei Dom Sebastião, visto como a esperança de propagação da fé católica e continuação das grandes conquistas portuguesas por todo o mundo.
4. Narração (Canto I, Estrofe 19 a Canto X, Estrofe 144)
A matéria do poema em si. A viagem de Vasco da Gama e as glórias da história heróica portuguesa.
5. Epílogo (Canto X, Estrofes 145 a 156)
Grande lamento do poeta, que reclama o fato de sua "voz rouca" não ser ouvida com mais atenção.
CAMÕES E O CLASSICISMO PORTUGUÊS
O renascimento literário atingiu seu ápice, em Portugal, durante o período conhecido como Classicismo, entre 1527 e 1580. O marco de seu início é o retorno a Portugal do poeta Sá de Miranda, que passara anos estudando na Itália, de onde traz as inovações dos poetas do Renascimento italiano, como o verso decassílabo e as posturas amorosas do Doce stil nouvo.
Mas foi Luís de Camões, cuja vida se estende exatamente durante este período, quem aperfeiçoou, na Língua Portuguesa, as novas técnicas poéticas, criando poemas líricos que rivalizam em perfeição formal com os de Petrarca e um poema épico, Os Lusíadas, que, à imitação de Homero e Virgílio, traduz em verso toda a história do povo português e suas grandes conquistas, tomando, como motivo central, a descoberta do caminho marítimo para as Índias por Vasco da Gama em 1497/99.
Para cantar a história do povo português, em Os Lusíadas, Camões foi buscar na antigüidade clássica a forma adequada: o poema épico, gênero poético narrativo e grandiloqüente, desenvolvido pelos poetas da antigüidade para cantar a história de todo um povo.
A Ilíada e a Odisséia, atribuídas a Homero (Século VIII a. C), através da narração de episódios da Guerra de Tróia, contam as lendas e a história heróica do povo grego. Já a Eneida, de Virgílio (71 a 19 a.C.), através das aventuras do herói Enéas, apresenta a história da fundação de Roma e as origens do povo romano.
Ao compor o maior monumento poético da Língua Portuguesa, Os Lusíadas, publicado em 1572, Camões copia a estrutura narrativa da Odisséia de Homero, assim como versos da Eneida de Virgílio. Utiliza a estrofação em Oitava Rima, inventada pelo italiano Ariosto, que consiste em estrofes de oito versos, rimadas sempre da mesma forma: abababcc. A epopéia se compõe de 1102 dessas estrofes, ou 8816 versos, todos decassílabos, divididos em 10 cantos.
Mas foi Luís de Camões, cuja vida se estende exatamente durante este período, quem aperfeiçoou, na Língua Portuguesa, as novas técnicas poéticas, criando poemas líricos que rivalizam em perfeição formal com os de Petrarca e um poema épico, Os Lusíadas, que, à imitação de Homero e Virgílio, traduz em verso toda a história do povo português e suas grandes conquistas, tomando, como motivo central, a descoberta do caminho marítimo para as Índias por Vasco da Gama em 1497/99.
Para cantar a história do povo português, em Os Lusíadas, Camões foi buscar na antigüidade clássica a forma adequada: o poema épico, gênero poético narrativo e grandiloqüente, desenvolvido pelos poetas da antigüidade para cantar a história de todo um povo.
A Ilíada e a Odisséia, atribuídas a Homero (Século VIII a. C), através da narração de episódios da Guerra de Tróia, contam as lendas e a história heróica do povo grego. Já a Eneida, de Virgílio (71 a 19 a.C.), através das aventuras do herói Enéas, apresenta a história da fundação de Roma e as origens do povo romano.
Ao compor o maior monumento poético da Língua Portuguesa, Os Lusíadas, publicado em 1572, Camões copia a estrutura narrativa da Odisséia de Homero, assim como versos da Eneida de Virgílio. Utiliza a estrofação em Oitava Rima, inventada pelo italiano Ariosto, que consiste em estrofes de oito versos, rimadas sempre da mesma forma: abababcc. A epopéia se compõe de 1102 dessas estrofes, ou 8816 versos, todos decassílabos, divididos em 10 cantos.
Episódio de Inês de Castro
(Canto III, estrofes 118 a 135)
Passada esta tão próspera vitória,
Tornado Afonso à Lusitana Terra,
A se lograr da paz com tanta glória
Quanta soube ganhar na dura guerra,
O caso triste e dino da memória,
Que do sepulcro os homens desenterra,
Aconteceu da mísera e mesquinha
Que despois de ser morta foi Rainha.
O rei Afonso voltou a Portugal, depois da vitória contra os mouros, esperando obter tanta glória na paz quanto obtivera na guerra. Então aconteceu o triste e memorável caso da desventurada que foi rainha depois de ser morta, assassinada.
Tu, só tu, puro Amor, com força crua,
Que os corações humanos tanto obriga,
Deste causa à molesta morte sua,
Como se fora pérfida inimiga.
Se dizem, fero Amor, que a sede tua
Nem com lágrimas tristes se mitiga,
É porque queres, áspero e tirano,
Tuas aras banhar em sangue humano.
O Amor, somente ele, foi quem causou a morte de Inês, como se ela fosse uma inimiga. Dizem que o Amor feroz, cruel, não se satisfaz com as lágrimas, com a tristeza, mas exige, como um deus severo e despótico, banhar seus altares ("aras") em sangue humano: requer sacrifícios humanos.
A palavra "pérfido", na obra, geralmente se refere aos Mouros inimigos. Nesse verso, parece indicar que Inês foi morta com a mesma crueldade que se usava contra eles.
Estavas, linda Inês, posta em sossego,
De teus anos colhendo doce fruito,
Naquele engano da alma, ledo e cego,
Que a Fortuna não deixa durar muito,
Nos saudosos campos do Mondego,
De teus fermosos olhos nunca enxuito,
Aos montes insinando e às ervinhas
O nome que no peito escrito tinhas.
Inês estava em Coimbra, sossegada, usufruindo ("colhendo doce fruito") da felicidade ilusória ("engano da alma, ledo e cego") e breve ("Que a Fortuna não deixa durar muito") da juventude. Nos campos, com os belos olhos úmidos de lágrimas de amor, repetia o nome do seu amado aos montes (para cima, para o alto) e às ervas (para baixo, para o chão).
As formas "fruito" e "enxuito" são variantes de "fruto" e "enxuto". Durante muito tempo, enquanto a Língua Portuguesa se solidificava, essas variantes foram utilizadas simultaneamente. A Língua Portuguesa acabou por definir "fruto" e "enxuto" como a forma culta.
Na época de Camões, palavras como despois, fruito, enxuito e escuito eram as mais usadas. Ele, então, prefere estas formas para se adequar à estrutura poética de Os Lusíadas - a oitava rima -, formada por versos decassílabos (heróicos ou sáficos), e respeitar o sistema rítmico dos versos - abababcc. Portanto, fruito (verso 2) e enxuito (verso 6) são as rimas cabíveis a muito (verso 4). Estas formas arcaicas ainda são utilizadas em muitas regiões.
Do teu Príncipe ali te respondiam
As lembranças que na alma lhe moravam,
Que sempre ante seus olhos te traziam,
Quando dos teus fermosos se apartavam;
De noite, em doces sonhos que mentiam,
De dia, em pensamentos que voavam;
E quanto, enfim, cuidava e quanto via
Eram tudo memórias de alegria.
As lembranças do Príncipe respondiam-lhe, em pensamentos e em sonhos, quando ele estava longe. Isto é, a memória do amado fazia com que Inês conversasse com ele, quando este estava ausente. Ambos não se esqueciam um do outro e se "comunicavam" através da memória, em forma de pensamentos e sonhos. Assim, tudo quanto faziam ou viam os fazia felizes, porque lembravam dos respectivos amados.
Esta estrofe é bastante ambígua. As lembranças do Príncipe vinham à mente de Inês como resposta aos seus cuidados amorosos; por outro lado, as mesmas lembranças, agora de Inês, existiam (moravam) na alma do príncipe quando estava longe da amada. Os sonhos e os pensamentos dos versos 5 e 6, dois modos de lembranças, pertencem indistintamente ao amado e à amada. E o sujeito de cuidava e via, no verso 7, tanto pode ser ela quanto o Príncipe.
De outras belas senhoras e Princesas
Os desejados tálamos enjeita,
Que tudo, enfim, tu, puro amor, desprezas,
Quando um gesto suave te sujeita.
Vendo estas namoradas estranhezas,
O velho pai sesudo, que respeita
O murmurar do povo e a fantasia
Do filho, que casar-se não queria,
O Príncipe se recusa a casar com outras mulheres (tálamo: casamento, leito conjugal) porque o amor despreza, rejeita tudo que não seja o rosto do amado (gesto significa rosto, semblante) a quem está sujeito. Ao ver este estranho amor, este comportamento estranho de não querer se casar, o pai sisudo (sério, grave) atende ao murmurar do povo e...
Tirar Inês ao mundo determina,
Por lhe tirar o filho que tem preso,
Crendo c'o sangue só da morte ladina
Matar do firme amor o fogo aceso.
Que furor consentiu que a espada fina,
Que pôde sustentar o grande peso
Do furor Mauro, fosse alevantada
Contra hûa fraca dama delicada?
... decide matar Inês, para que o filho seja libertado do seu amor. O pai acredita que só o sangue da morte apagará o fogo do amor. Que fúria foi essa que fez com que a espada cortante que afrontara o poder dos Mouros fosse levantada contra uma frágil e indefesa mulher?
Traziam-na os horríficos algozes
Ante o Rei, já movido a piedade;
Mas o povo, com falsas e ferozes
Razões, à morte crua o persuade.
Ela, com tristes e piedosas vozes,
Saídas só da mágoa e saudade
Do seu Príncipe e filhos, que deixava,
Que mais que a própria morte a magoava,
Carrascos
Quando os horríveis e cruéis carrascos trouxeram Inês perante o rei, este já estava compadecido (com dó) e arrependido. No entanto, o povo persuadia, incitava o rei a matá-la. Inês, então, com palavras ou com a voz triste, sentindo mais pela dor e saudade do príncipe e dos filhos do que pela própria morte...
Pera o céu cristalino alevantando,
Com lágrimas, os olhos piedosos
(Os olhos, porque as mãos lhe estava atando
Um dos duros ministros rigorosos);
E despois, nos mininos atentando,
Que tão queridos tinha e tão mimosos,
Cuja orfindade como mãe temia,
Pera o avô cruel assi dizia:
Levantando os olhos cheios de lágrimas ao céu (somente os olhos, porque um carrasco prendia-lhe as mãos) e, depois, olhando para as crianças - que amava tanto e temia que ficassem órfãs -, disse para o avô cruel (o rei):
Se já nas brutas feras, cuja mente
Natura fez cruel de nascimento,
E nas aves agrestes, que somente
Nas rapinas aéreas tem o intento,
Com pequenas crianças viu a gente
Terem tão piedoso sentimento
Como c'o a mãe de Nino já mostraram,
E c'os irmãos que Roma edificaram:
"Se já vimos que até os animais selvagens, cujos instintos são cruéis, e as aves de rapina têm piedade com as crianças, como demostraram as histórias da mãe de Nino e a dos fundadores de Roma..."
Semíramis, rainha da Assíria e mãe de Nino, a abandonara num monte. Nino foi alimentada por aves de rapina. Rômulo e Remo, fundadores de Roma, foram abandonados quando infantes e amamentados por uma loba.
Ó tu, que tens de humano o gesto e o peito
(Se de humano é matar hûa donzela,
Fraca e sem força, só por ter sujeito
O coração a quem soube vencê-la),
A estas criancinhas tem respeito,
Pois o não tens à morte escura dela;
Mova-te a piedade sua e minha,
Pois te não move a culpa que não tinha.
Sendo assim, ele, o rei, que tinha o rosto e o coração humanos (se é que é humano matar uma mulher só porque esta ama um homem que a conquistou), poderia ao menos ter respeito e consideração às crianças, ainda que não se importasse com a triste morte da mãe. Inês suplica, então, que o rei se compadeça dela e das crianças, já que não queria perdoá-la ou absolvê-la de uma culpa, um crime, que não tinha cometido.
E se, vencendo a Maura resistência,
A morte sabes dar com fogo e ferro,
Sabe também dar vida, com clemência,
A quem peja perdê-la não fez erro.
Mas, se to assi merece esta inocência,
Põe-me em perpétuo e mísero desterro,
Na Cítia fria ou lá na Líbia ardente,
Onde em lágrimas viva eternamente.
E se o rei sabia dar a morte, como o mostrara ao vencer os Mouros, também saberia dar a vida a quem era inocente. Mas, se apesar da sua inocência, ainda a quisesse castigar, que a desterrasse, expulsasse, para uma região gelada ou tórrida, para sempre.
Põe-me onde se use toda a feridade,
Entre leões e tigres, e verei
Se neles achar posso a piedade
Que entre peitos humanos não achei.
Ali, c'o amor intrínseco e vontade
Naquele por quem mouro, criarei
Estas relíquias suas que aqui viste,
Que refrigério sejam da mãe triste.)
Que ele a colocasse entre as feras, onde poderia encontrar a piedade que não achara entre os homens. Ali, por amor daquele por quem morria ou sofria, criaria os filhos, que era recordações do pai e seriam consolação da mãe.
Queria perdoar-lhe o Rei benino,
Movido das palavras que o magoam;
Mas o pertinaz povo e seu destino
(Que desta sorte o quis) lhe não perdoam.
Arrancam das espadas de aço fino
Os que por bom tal feito ali apregoam.
Contra hûa dama, ó peitos carniceiros,
Feros vos amostrais e cavaleiros?
O rei bondoso queria perdoar Inês, comovido por suas palavras. Mas o povo obstinado, persistente e o destino de Inês (que assim o quis) não lhe perdoaram. Os que proclamavam que ela deveria morrer puxam suas espadas. Mostram-se valentes atacando uma dama.
Qual contra a linda moça Policena,
Consolação extrema da mãe velha,
Porque a sombra de Aquiles a condena,
C'o ferro o duro Pirro se aparelha;
Mas ela, os olhos, com que o ar serena
(Bem como paciente e mansa ovelha),
Na mísera mãe postos, que endoudece,
Ao duro sacrifício se oferece:
Assim como Pirro se prepara com a espada ("ferro") para matar Policena, por ordem do fantasma de Aquiles, e ela - mansa e serenamente -, movendo os olhos para a mãe, enlouquecida de dor, oferece-se ao sacrifício...
Aquiles, herói da guerra de Tróia, era invulnerável por ter sido submergido, logo ao nascer, na água da lagoa Estígia (Lagoa da Morte).
Personagem da Ilíada de Homero, morreu durante a guerra de Tróia, quando foi atingido por uma seta no calcanhar, o único ponto vulnerável do seu corpo. Pirro, filho de Aquiles, teria sido aconselhado pelo fantasma ("sombra") do pai a matar Policena, noiva do herói morto. Matou-a quando esta se encontrava sobre o túmulo de Aquiles.
Tais contra Inês os brutos matadores,
No colo de alabastro, que sustinha
As obras com que Amor matou de amores
Aquele que despois a fez Rainha,
As espadas banhando e as brancas flores,
Que ela dos olhos seus regadas tinha,
Se encarniçavam, fervidos e irosos,
No futuro castigo não cuidosos.
Do mesmo modo agem os cruéis assassinos de Inês. No pescoço ("colo") que sustenta o belo rosto ("as obras": o sorriso, o olhar, os movimentos do rosto) pelo qual se apaixonou (o deus Amor, Cupido, fez morrer de paixão) o príncipe, que depois a fará rainha, eles (os matadores) banham, lavam suas espadas e também as faces pálidas ("brancas flores") e molhadas de lágrimas de Inês; atacavam enraivecidos, sem pensarem no castigo que o futuro lhes reservava.
Camões supõe que Inês foi degolada, como Policena oferecendo o pescoço ao golpe, e o sangue escorreu sobre seu rosto.
Bem puderas, ó Sol, da vista destes,
Teus raios apartar aquele dia,
Como da seva mesa de Tiestes,
Quando os filhos por mão de Atreu comia!
Vós, ó côncavos vales, que pudestes
A voz extrema ouvir da boca fria,
O nome do seu Pedro, que lhe ouvistes,
Por muito grande espaço repetistes.
Naquele dia, o sol deveria ter-se escondido, como fizera quando Tiestes comeu os próprios filhos em um banquete servido por Atreu, para não ver o terrível crime. A última palavra de Inês - o nome de Pedro, o príncipe - ecoou longa e repetidamente através da região.
Camões iguala a crueldade da morte de Inês à da história de Atreu e Tiestes. Tiestes era filho de Pélops e irmão de Atreu. Seduziu a esposa do irmão. Atreu deu a comer a Tiestes os filhos que nasceram daquela união.
Assi como a bonina, que cortada
Antes do tempo foi, cândida e bela,
Sendo das mãos lascivas maltratada
Da minina que a trouxe na capela,
O cheiro traz perdido e a cor murchada:
Tal está, morta, a pálida donzela,
Secas do rosto as rosas e perdida
A branca e viva cor, co a doce vida.
Como uma flor colhida precocemente pelas mãos travessas ("lascivas") de uma menina para colocá-la numa grinalda ("capela"), assim está Inês, sem perfume e sem cor. Morta, pálida, com as faces ("do rosto as rosas") secas, murchas, sem rubor. O padrão de beleza feminino era uma combinação de branco na testa, colo, etc. ("branca e viva cor" ) e vermelho ("viva cor") nas "rosas" do rosto.
As filhas do Mondego a morte escura
Longo tempo chorando memoraram,
E, por memória eterna, em fonte pura
As lágrimas choradas transformaram.
O nome lhe puseram, que inda dura,
Dos amores de Inês, que ali passaram.
Vede que fresca fonte rega as flores,
Que lágrimas são a água e o nome Amores.
As ninfas do Mondego (rio de Portugal), durante muito tempo, lembraram chorando a morte de Inês. E, para sua memória eterna, as lágrimas transformaram-se numa fonte chamada "dos amores de Inês", acontecidos ali. A fonte que rega as flores é refrescante porque é feita de lágrimas e de amores.
Pera o céu cristalino alevantando,
Com lágrimas, os olhos piedosos
(Os olhos, porque as mãos lhe estava atando
Um dos duros ministros rigorosos);
E despois, nos mininos atentando,
Que tão queridos tinha e tão mimosos,
Cuja orfindade como mãe temia,
Pera o avô cruel assi dizia:
Levantando os olhos cheios de lágrimas ao céu (somente os olhos, porque um carrasco prendia-lhe as mãos) e, depois, olhando para as crianças - que amava tanto e temia que ficassem órfãs -, disse para o avô cruel (o rei):
Se já nas brutas feras, cuja mente
Natura fez cruel de nascimento,
E nas aves agrestes, que somente
Nas rapinas aéreas tem o intento,
Com pequenas crianças viu a gente
Terem tão piedoso sentimento
Como c'o a mãe de Nino já mostraram,
E c'os irmãos que Roma edificaram:
"Se já vimos que até os animais selvagens, cujos instintos são cruéis, e as aves de rapina têm piedade com as crianças, como demostraram as histórias da mãe de Nino e a dos fundadores de Roma..."
Semíramis, rainha da Assíria e mãe de Nino, a abandonara num monte. Nino foi alimentada por aves de rapina. Rômulo e Remo, fundadores de Roma, foram abandonados quando infantes e amamentados por uma loba.
Ó tu, que tens de humano o gesto e o peito
(Se de humano é matar hûa donzela,
Fraca e sem força, só por ter sujeito
O coração a quem soube vencê-la),
A estas criancinhas tem respeito,
Pois o não tens à morte escura dela;
Mova-te a piedade sua e minha,
Pois te não move a culpa que não tinha.
Sendo assim, ele, o rei, que tinha o rosto e o coração humanos (se é que é humano matar uma mulher só porque esta ama um homem que a conquistou), poderia ao menos ter respeito e consideração às crianças, ainda que não se importasse com a triste morte da mãe. Inês suplica, então, que o rei se compadeça dela e das crianças, já que não queria perdoá-la ou absolvê-la de uma culpa, um crime, que não tinha cometido.
E se, vencendo a Maura resistência,
A morte sabes dar com fogo e ferro,
Sabe também dar vida, com clemência,
A quem peja perdê-la não fez erro.
Mas, se to assi merece esta inocência,
Põe-me em perpétuo e mísero desterro,
Na Cítia fria ou lá na Líbia ardente,
Onde em lágrimas viva eternamente.
E se o rei sabia dar a morte, como o mostrara ao vencer os Mouros, também saberia dar a vida a quem era inocente. Mas, se apesar da sua inocência, ainda a quisesse castigar, que a desterrasse, expulsasse, para uma região gelada ou tórrida, para sempre.
Põe-me onde se use toda a feridade,
Entre leões e tigres, e verei
Se neles achar posso a piedade
Que entre peitos humanos não achei.
Ali, c'o amor intrínseco e vontade
Naquele por quem mouro, criarei
Estas relíquias suas que aqui viste,
Que refrigério sejam da mãe triste.)
Que ele a colocasse entre as feras, onde poderia encontrar a piedade que não achara entre os homens. Ali, por amor daquele por quem morria ou sofria, criaria os filhos, que era recordações do pai e seriam consolação da mãe.
Queria perdoar-lhe o Rei benino,
Movido das palavras que o magoam;
Mas o pertinaz povo e seu destino
(Que desta sorte o quis) lhe não perdoam.
Arrancam das espadas de aço fino
Os que por bom tal feito ali apregoam.
Contra hûa dama, ó peitos carniceiros,
Feros vos amostrais e cavaleiros?
O rei bondoso queria perdoar Inês, comovido por suas palavras. Mas o povo obstinado, persistente e o destino de Inês (que assim o quis) não lhe perdoaram. Os que proclamavam que ela deveria morrer puxam suas espadas. Mostram-se valentes atacando uma dama.
Qual contra a linda moça Policena,
Consolação extrema da mãe velha,
Porque a sombra de Aquiles a condena,
C'o ferro o duro Pirro se aparelha;
Mas ela, os olhos, com que o ar serena
(Bem como paciente e mansa ovelha),
Na mísera mãe postos, que endoudece,
Ao duro sacrifício se oferece:
Assim como Pirro se prepara com a espada ("ferro") para matar Policena, por ordem do fantasma de Aquiles, e ela - mansa e serenamente -, movendo os olhos para a mãe, enlouquecida de dor, oferece-se ao sacrifício...
Aquiles, herói da guerra de Tróia, era invulnerável por ter sido submergido, logo ao nascer, na água da lagoa Estígia (Lagoa da Morte).
Personagem da Ilíada de Homero, morreu durante a guerra de Tróia, quando foi atingido por uma seta no calcanhar, o único ponto vulnerável do seu corpo. Pirro, filho de Aquiles, teria sido aconselhado pelo fantasma ("sombra") do pai a matar Policena, noiva do herói morto. Matou-a quando esta se encontrava sobre o túmulo de Aquiles.
Tais contra Inês os brutos matadores,
No colo de alabastro, que sustinha
As obras com que Amor matou de amores
Aquele que despois a fez Rainha,
As espadas banhando e as brancas flores,
Que ela dos olhos seus regadas tinha,
Se encarniçavam, fervidos e irosos,
No futuro castigo não cuidosos.
Do mesmo modo agem os cruéis assassinos de Inês. No pescoço ("colo") que sustenta o belo rosto ("as obras": o sorriso, o olhar, os movimentos do rosto) pelo qual se apaixonou (o deus Amor, Cupido, fez morrer de paixão) o príncipe, que depois a fará rainha, eles (os matadores) banham, lavam suas espadas e também as faces pálidas ("brancas flores") e molhadas de lágrimas de Inês; atacavam enraivecidos, sem pensarem no castigo que o futuro lhes reservava.
Camões supõe que Inês foi degolada, como Policena oferecendo o pescoço ao golpe, e o sangue escorreu sobre seu rosto.
Bem puderas, ó Sol, da vista destes,
Teus raios apartar aquele dia,
Como da seva mesa de Tiestes,
Quando os filhos por mão de Atreu comia!
Vós, ó côncavos vales, que pudestes
A voz extrema ouvir da boca fria,
O nome do seu Pedro, que lhe ouvistes,
Por muito grande espaço repetistes.
Naquele dia, o sol deveria ter-se escondido, como fizera quando Tiestes comeu os próprios filhos em um banquete servido por Atreu, para não ver o terrível crime. A última palavra de Inês - o nome de Pedro, o príncipe - ecoou longa e repetidamente através da região.
Camões iguala a crueldade da morte de Inês à da história de Atreu e Tiestes. Tiestes era filho de Pélops e irmão de Atreu. Seduziu a esposa do irmão. Atreu deu a comer a Tiestes os filhos que nasceram daquela união.
Assi como a bonina, que cortada
Antes do tempo foi, cândida e bela,
Sendo das mãos lascivas maltratada
Da minina que a trouxe na capela,
O cheiro traz perdido e a cor murchada:
Tal está, morta, a pálida donzela,
Secas do rosto as rosas e perdida
A branca e viva cor, co a doce vida.
Como uma flor colhida precocemente pelas mãos travessas ("lascivas") de uma menina para colocá-la numa grinalda ("capela"), assim está Inês, sem perfume e sem cor. Morta, pálida, com as faces ("do rosto as rosas") secas, murchas, sem rubor. O padrão de beleza feminino era uma combinação de branco na testa, colo, etc. ("branca e viva cor" ) e vermelho ("viva cor") nas "rosas" do rosto.
As filhas do Mondego a morte escura
Longo tempo chorando memoraram,
E, por memória eterna, em fonte pura
As lágrimas choradas transformaram.
O nome lhe puseram, que inda dura,
Dos amores de Inês, que ali passaram.
Vede que fresca fonte rega as flores,
Que lágrimas são a água e o nome Amores.
As ninfas do Mondego (rio de Portugal), durante muito tempo, lembraram chorando a morte de Inês. E, para sua memória eterna, as lágrimas transformaram-se numa fonte chamada "dos amores de Inês", acontecidos ali. A fonte que rega as flores é refrescante porque é feita de lágrimas e de amores.
Episódio do Velho do Restelo
(Canto IV, estrofes 90 a 104)
(Canto IV, estrofes 90 a 104)
"Qual vai dizendo: %u2014" Ó filho, a quem eu tinha
Só para refrigério, e doce amparo
Desta cansada já velhice minha,
Que em choro acabará, penoso e amaro,
Por que me deixas, mísera e mesquinha?
Por que de mim te vás, ó filho caro,
A fazer o funéreo enterramento,
Onde sejas de peixes mantimento!" %u2014
Uma mãe fala ao filho, lamentando-se de que ele, que iria ampará-la e cuidar dela na velhice, a está abandonando para servir de alimento aos peixes. O lamento das mulheres nessa e na estrofe seguinte é plenamente justificado: a frota de Vasco da Gama deixou o cais do Restelo com 170 homens, dos quais apenas 55 retornariam vivos a Portugal.
"Qual em cabelo: %u2014"Ó doce e amado esposo,
Sem quem não quis Amor que viver possa,
Por que is aventurar ao mar iroso
Essa vida que é minha, e não é vossa?
Como por um caminho duvidoso
Vos esquece a afeição tão doce nossa?
Nosso amor, nosso vão contentamento
Quereis que com as velas leve o vento?" %u2014
Outra mulher, com o cabelo descoberto ("em cabelo"), pergunta ao marido, sem o qual não poderá viver, o motivo de ele ir arriscar a vida ao mar bravio, quando a vida dele pertence a ela, e não a ele; e como ele pode esquecer ou trocar o sentimento deles pela incerteza dos ventos e do mar. Será que ele deseja que o vento leve, com as velas da embarcação, o seu amor? Note-se a aliteração final (Velas leVe o Vento) que imita o som do Vento.
"Nestas e outras palavras que diziam
De amor e de piedosa humanidade,
Os velhos e os meninos os seguiam,
Em quem menos esforço põe a idade.
Os montes de mais perto respondiam,
Quase movidos de alta piedade;
A branca areia as lágrimas banhavam,
Que em multidão com elas se igualavam.
Com estas e outras palavras de amor e de piedade, os velhos e as crianças, a quem a idade faz mais fracos, os seguiam. E os montes, como se estivessem comovidos, respondiam a estes lamentos com ecos. As lágrimas molhavam a areia, e eram tantas que, em quantidade, se igualavam à areia.
"Nós outros sem a vista alevantarmos
Nem a mãe, nem a esposa, neste estado,
Por nos não magoarmos, ou mudarmos
Do propósito firme começado,
Determinei de assim nos embarcarmos
Sem o despedimento costumado,
Que, posto que é de amor usança boa,
A quem se aparta, ou fica, mais magoa.
Só para refrigério, e doce amparo
Desta cansada já velhice minha,
Que em choro acabará, penoso e amaro,
Por que me deixas, mísera e mesquinha?
Por que de mim te vás, ó filho caro,
A fazer o funéreo enterramento,
Onde sejas de peixes mantimento!" %u2014
Uma mãe fala ao filho, lamentando-se de que ele, que iria ampará-la e cuidar dela na velhice, a está abandonando para servir de alimento aos peixes. O lamento das mulheres nessa e na estrofe seguinte é plenamente justificado: a frota de Vasco da Gama deixou o cais do Restelo com 170 homens, dos quais apenas 55 retornariam vivos a Portugal.
"Qual em cabelo: %u2014"Ó doce e amado esposo,
Sem quem não quis Amor que viver possa,
Por que is aventurar ao mar iroso
Essa vida que é minha, e não é vossa?
Como por um caminho duvidoso
Vos esquece a afeição tão doce nossa?
Nosso amor, nosso vão contentamento
Quereis que com as velas leve o vento?" %u2014
Outra mulher, com o cabelo descoberto ("em cabelo"), pergunta ao marido, sem o qual não poderá viver, o motivo de ele ir arriscar a vida ao mar bravio, quando a vida dele pertence a ela, e não a ele; e como ele pode esquecer ou trocar o sentimento deles pela incerteza dos ventos e do mar. Será que ele deseja que o vento leve, com as velas da embarcação, o seu amor? Note-se a aliteração final (Velas leVe o Vento) que imita o som do Vento.
"Nestas e outras palavras que diziam
De amor e de piedosa humanidade,
Os velhos e os meninos os seguiam,
Em quem menos esforço põe a idade.
Os montes de mais perto respondiam,
Quase movidos de alta piedade;
A branca areia as lágrimas banhavam,
Que em multidão com elas se igualavam.
Com estas e outras palavras de amor e de piedade, os velhos e as crianças, a quem a idade faz mais fracos, os seguiam. E os montes, como se estivessem comovidos, respondiam a estes lamentos com ecos. As lágrimas molhavam a areia, e eram tantas que, em quantidade, se igualavam à areia.
"Nós outros sem a vista alevantarmos
Nem a mãe, nem a esposa, neste estado,
Por nos não magoarmos, ou mudarmos
Do propósito firme começado,
Determinei de assim nos embarcarmos
Sem o despedimento costumado,
Que, posto que é de amor usança boa,
A quem se aparta, ou fica, mais magoa.
O Anticlímax
Com medo de sofrer ou se arrepender, os nautas (navegantes), não olhavam para as mães e esposas. Vasco da Gama decidiu que embarcariam sem a despedida costumeira, porque, ainda que seja um bom costume porque mostra o amor das pessoas, faz sofrer a quem parte e a quem fica.
"Mas um velho d'aspeito venerando,
Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente,
C'um saber só de experiências feito,
Tais palavras tirou do experto peito:
Mas um velho de aspecto respeitável (venerável), que estava entre as pessoas, na praia, olhando para os navegadores e balançando a cabeça negativamente, levantou um pouco mais alto a voz grave, que foi ouvida claramente pelo que estavam no mar, e com uma sabedoria feita de experiências disse algumas palavras sábias, inteligentes, e profundas ("experto peito" - "experto" = experiente, experimentado, culto, inteligente).
%u2014"Ó glória de mandar! Ó vã cobiça
Desta vaidade, a quem chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
C'uma aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimentas!
Este prazer dos homens de dominar e a cobiça fútil e sem valor da fama são tolices ilusórias, passageiras ("vaidade"). Esta satisfação falsa, enganadora, é estimulada pelas pessoas, que a chamam de honra. Isso castiga grandemente os homens de coração tolo, vazio ("peito vão") que ambicionam o poder e a fama; fazendo com que experimentem muitos suplícios ("mortes", "perigos", "tormentas") e crueldade.
Note que a expressão "peito vão", nesta estrofe, se opõe à "experto peito", na estrofe anterior.
Essas estrofes remetem ao livro bíblico de Eclesiastes, em que o rei Salomão afirma e argumenta que "é tudo vaidade" (Eclesiastes 1:2) e que "Melhor é ouvir a repreensão do sábio, do que ouvir alguém a canção do tolo." (Eclesiastes 7:5).
%u2014 "Dura inquietação d'alma e da vida,
Fonte de desamparos e adultérios,
Sagaz consumidora conhecida
De fazendas, de reinos e de impérios:
Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
Sendo dina de infames vitupérios;
Chamam-te Fama e Glória soberana,
Nomes com quem se o povo néscio engana!
Esta ambição causa angústia e perturbação ("inquietação d'alma e da vida"), é origem de abandonos e adultérios e destrói fortunas e Estados. Chamam-na de nobre e elevada, quando é digna, merecedora, de desmoralizantes insultos, palavras infamantes. Fama e glória são palavras para enganar o povo ignorante e tolo.
%u2014"A que novos desastres determinas
De levar estes reinos e esta gente?
Que perigos, que mortes lhe destinas
Debaixo dalgum nome preminente?
Que promessas de reinos, e de minas
D'ouro, que lhe farás tão facilmente?
Que famas lhe prometerás? que histórias?
Que triunfos, que palmas, que vitórias?
E o velho pergunta que novos desastres serão causados ao reino e ao povo, em nome de (disfarçados em) alguma palavra enobrecedora. Que promessas fáceis serão feitas de reinos, de minas de ouro, famas, histórias e triunfos para enganá-los?
%u2014 "Mas ó tu, geração daquele insano,
Cujo pecado e desobediência,
Não somente do reino soberano
Te pôs neste desterro e triste ausência,
Mas inda doutro estado mais que humano
Da quieta e da simples inocência,
Idade d'ouro, tanto te privou,
Que na de ferro e d'armas te deitou:
Mas o gênero humano, descendente do insensato e demente cujo pecado provocou não somente sua expulsão e exílio ("desterro e triste ausência") do paraíso ("reino soberano"), mas também privou-o do estado de paz e de inocência da idade de ouro e o colocou, o abateu ("te deitou") na idade do ferro e das guerras.
%u2014 "Já que nesta gostosa vaidade
Tanto enlevas a leve fantasia,
Já que à bruta crueza e feridade
Puseste nome esforço e valentia,
Já que prezas em tanta quantidade
O desprezo da vida, que devia
De ser sempre estimada, pois que já
Temeu tanto perdê-la quem a dá:
Já que, nessa prazerosa tolice, o homem tanto empenha, arrebata a imaginação, a criatividade; já que dá o nome de esforço e valentia à violenta crueldade e perversidade; já que dá tanto valor ao desprezo pela vida, que deveria ser sempre amada e preservada, pois até quem a deu teve medo de perdê-la (refere-se a Cristo, que receou a morte, na noite anterior à sua crucificação).
%u2014 "Não tens junto contigo o Ismaelita,
Com quem sempre terás guerras sobejas?
Não segue ele do Arábio a lei maldita,
Se tu pela de Cristo só pelejas?
Não tem cidades mil, terra infinita,
Se terras e riqueza mais desejas?
Não é ele por armas esforçado,
Se queres por vitórias ser louvado?
Já que é assim, não estão ali perto os Mouros ("o Ismaelita"), com quem sempre terá guerras de sobra (muitos combates)? Não seguem eles a lei maldita dos árabes (refere-se ao Corão - lei islâmica, criada por Maomé, profeta de Alá), enquanto você guerreia ("pelejas") pela lei de Cristo? Se luta para enriquecer ("terras e riqueza mais desejas"), os mouros tem muitas cidades e terra; eles são guerreiros valentes ("por armas esforçado"), se o que deseja é ser glorificado, elogiado pelas vitórias na guerra.
Ismaelita é a designação dada aos descendentes de Ismael, filho de Abraão e da escrava Agar. Os ismaelitas viviam numa confederação de tribos no deserto da Arábia e deram origem aos árabes.
%u2014 "Deixas criar às portas o inimigo,
Por ires buscar outro de tão longe,
Por quem se despovoe o Reino antigo,
Se enfraqueça e se vá deitando a longe?
Buscas o incerto e incógnito perigo
Por que a fama te exalte e te lisonge,
Chamando-te senhor, com larga cópia,
Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia?
Descuida do inimigo próximo para buscar outro distante, por quem o reino iria se despovoar, se enfraquecer e se perder. Procura o perigo impreciso e desconhecido, para que a fama o celebre e elogie chamando-o, em grande quantidade ("larga cópia"), de senhor da Índia, Pérsia, Arábia e Etiópia.
O objeto a quem se dirige o Velho vai mudando no decorrer do discurso. Primeiro é um sentimento descrito como "glória de mandar" etc; depois é a "geração daquele insano", isto é, o gênero humano; então é alguém que procura a guerra na Índia (provavelmente Vasco da Gama e os navegantes) e, finalmente, o título de "senhor da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia" que identifica o próprio rei de Portugal.
%u2014 "Ó maldito o primeiro que no mundo
Nas ondas velas pôs em seco lenho,
Dino da eterna pena do profundo,
Se é justa a justa lei, que sigo e tenho!
Nunca juízo algum alto e profundo,
Nem cítara sonora, ou vivo engenho,
Te dê por isso fama nem memória,
Mas contigo se acabe o nome e glória.
O Velho amaldiçoa o homem que fez o primeiro barco ("pôs velas nas ondas"), como merecedor do inferno ("dino da eterna pena do profundo"), se houver justiça como a que ele acredita. Que nunca sejam feitos um alto conceito, nem música ("cítara sonora") ou poesia ("vivo engenho") que eternize sua memória por este feito ("Te dê por isso fama nem memória"), mas que, com o inventor do primeiro barco, morram sua fama, sua reputação ("seu nome") e sua glória.
%u2014 "Trouxe o filho de Jápeto do Céu
O fogo que ajuntou ao peito humano,
Fogo que o mundo em armas acendeu
Em mortes, em desonras (grande engano).
Quanto melhor nos fora, Prometeu,
E quanto para o mundo menos dano,
Que a tua estátua ilustre não tivera
Fogo de altos desejos, que a movera!
Afirma que o fogo que o filho de Jápeto trouxe do céu e deu aos homens, esse fogo o mundo acendeu em armas, em mortes, em desonras. Foi um grande erro ("engano") dar o fogo à humanidade. Teria sido melhor a nós e causado menos dano (prejuízo) ao mundo se a estátua feita por Prometeu não tivesse o fogo do desejo que a movera.
O filho de Jápeto era Prometeu, o titã que roubou o fogo aos deuses e o deu aos homens. Prometeu trouxe o fogo do Olimpo escondido em uma estátua humana. Foi condenado a ficar preso num rochedo enquanto uma águia lhe comia as entranhas.
%u2014 "Não cometera o moço miserando
O carro alto do pai, nem o ar vazio
O grande Arquiteto co'o filho, dando
Um, nome ao mar, e o outro, fama ao rio.
Nenhum cometimento alto e nefando,
Por fogo, ferro, água, calma e frio,
Deixa intentado a humana geração.
Mísera sorte, estranha condição!" %u2014
Se não fosse esse fogo do desejo, o jovem miserável e digno de pena não teria ousado guiar o carro do pai, nem o grande arquiteto e seu filho teriam se arriscado a voar ("cometera o ar vazio"). Um deu nome ao mar e o outro deu fama ao rio. Camões se refere a Faeton ou Faetonte, filho de Apolo, o deus Sol, que foi imprudente e caiu com o carro do pai no rio Eridano e Dédalo, arquiteto do labirinto, que, com cera e penas, construiu asas para si e para seu filho Ícaro que, descuidado, voou rumo ao sol e acabou caindo no mar.
Nenhum empreendimento nobre ou perverso, por qualquer modo realizado ("Por fogo, ferro, água, calma e frio"), o gênero humano ("humana geração") não tenta realizar ("deixa intentado"). É um destino miserável e uma estranha obrigação (ou um estado, um modo de ser esquisito).
"Mas um velho d'aspeito venerando,
Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente,
C'um saber só de experiências feito,
Tais palavras tirou do experto peito:
Mas um velho de aspecto respeitável (venerável), que estava entre as pessoas, na praia, olhando para os navegadores e balançando a cabeça negativamente, levantou um pouco mais alto a voz grave, que foi ouvida claramente pelo que estavam no mar, e com uma sabedoria feita de experiências disse algumas palavras sábias, inteligentes, e profundas ("experto peito" - "experto" = experiente, experimentado, culto, inteligente).
%u2014"Ó glória de mandar! Ó vã cobiça
Desta vaidade, a quem chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
C'uma aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimentas!
Este prazer dos homens de dominar e a cobiça fútil e sem valor da fama são tolices ilusórias, passageiras ("vaidade"). Esta satisfação falsa, enganadora, é estimulada pelas pessoas, que a chamam de honra. Isso castiga grandemente os homens de coração tolo, vazio ("peito vão") que ambicionam o poder e a fama; fazendo com que experimentem muitos suplícios ("mortes", "perigos", "tormentas") e crueldade.
Note que a expressão "peito vão", nesta estrofe, se opõe à "experto peito", na estrofe anterior.
Essas estrofes remetem ao livro bíblico de Eclesiastes, em que o rei Salomão afirma e argumenta que "é tudo vaidade" (Eclesiastes 1:2) e que "Melhor é ouvir a repreensão do sábio, do que ouvir alguém a canção do tolo." (Eclesiastes 7:5).
%u2014 "Dura inquietação d'alma e da vida,
Fonte de desamparos e adultérios,
Sagaz consumidora conhecida
De fazendas, de reinos e de impérios:
Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
Sendo dina de infames vitupérios;
Chamam-te Fama e Glória soberana,
Nomes com quem se o povo néscio engana!
Esta ambição causa angústia e perturbação ("inquietação d'alma e da vida"), é origem de abandonos e adultérios e destrói fortunas e Estados. Chamam-na de nobre e elevada, quando é digna, merecedora, de desmoralizantes insultos, palavras infamantes. Fama e glória são palavras para enganar o povo ignorante e tolo.
%u2014"A que novos desastres determinas
De levar estes reinos e esta gente?
Que perigos, que mortes lhe destinas
Debaixo dalgum nome preminente?
Que promessas de reinos, e de minas
D'ouro, que lhe farás tão facilmente?
Que famas lhe prometerás? que histórias?
Que triunfos, que palmas, que vitórias?
E o velho pergunta que novos desastres serão causados ao reino e ao povo, em nome de (disfarçados em) alguma palavra enobrecedora. Que promessas fáceis serão feitas de reinos, de minas de ouro, famas, histórias e triunfos para enganá-los?
%u2014 "Mas ó tu, geração daquele insano,
Cujo pecado e desobediência,
Não somente do reino soberano
Te pôs neste desterro e triste ausência,
Mas inda doutro estado mais que humano
Da quieta e da simples inocência,
Idade d'ouro, tanto te privou,
Que na de ferro e d'armas te deitou:
Mas o gênero humano, descendente do insensato e demente cujo pecado provocou não somente sua expulsão e exílio ("desterro e triste ausência") do paraíso ("reino soberano"), mas também privou-o do estado de paz e de inocência da idade de ouro e o colocou, o abateu ("te deitou") na idade do ferro e das guerras.
%u2014 "Já que nesta gostosa vaidade
Tanto enlevas a leve fantasia,
Já que à bruta crueza e feridade
Puseste nome esforço e valentia,
Já que prezas em tanta quantidade
O desprezo da vida, que devia
De ser sempre estimada, pois que já
Temeu tanto perdê-la quem a dá:
Já que, nessa prazerosa tolice, o homem tanto empenha, arrebata a imaginação, a criatividade; já que dá o nome de esforço e valentia à violenta crueldade e perversidade; já que dá tanto valor ao desprezo pela vida, que deveria ser sempre amada e preservada, pois até quem a deu teve medo de perdê-la (refere-se a Cristo, que receou a morte, na noite anterior à sua crucificação).
%u2014 "Não tens junto contigo o Ismaelita,
Com quem sempre terás guerras sobejas?
Não segue ele do Arábio a lei maldita,
Se tu pela de Cristo só pelejas?
Não tem cidades mil, terra infinita,
Se terras e riqueza mais desejas?
Não é ele por armas esforçado,
Se queres por vitórias ser louvado?
Já que é assim, não estão ali perto os Mouros ("o Ismaelita"), com quem sempre terá guerras de sobra (muitos combates)? Não seguem eles a lei maldita dos árabes (refere-se ao Corão - lei islâmica, criada por Maomé, profeta de Alá), enquanto você guerreia ("pelejas") pela lei de Cristo? Se luta para enriquecer ("terras e riqueza mais desejas"), os mouros tem muitas cidades e terra; eles são guerreiros valentes ("por armas esforçado"), se o que deseja é ser glorificado, elogiado pelas vitórias na guerra.
Ismaelita é a designação dada aos descendentes de Ismael, filho de Abraão e da escrava Agar. Os ismaelitas viviam numa confederação de tribos no deserto da Arábia e deram origem aos árabes.
%u2014 "Deixas criar às portas o inimigo,
Por ires buscar outro de tão longe,
Por quem se despovoe o Reino antigo,
Se enfraqueça e se vá deitando a longe?
Buscas o incerto e incógnito perigo
Por que a fama te exalte e te lisonge,
Chamando-te senhor, com larga cópia,
Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia?
Descuida do inimigo próximo para buscar outro distante, por quem o reino iria se despovoar, se enfraquecer e se perder. Procura o perigo impreciso e desconhecido, para que a fama o celebre e elogie chamando-o, em grande quantidade ("larga cópia"), de senhor da Índia, Pérsia, Arábia e Etiópia.
O objeto a quem se dirige o Velho vai mudando no decorrer do discurso. Primeiro é um sentimento descrito como "glória de mandar" etc; depois é a "geração daquele insano", isto é, o gênero humano; então é alguém que procura a guerra na Índia (provavelmente Vasco da Gama e os navegantes) e, finalmente, o título de "senhor da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia" que identifica o próprio rei de Portugal.
%u2014 "Ó maldito o primeiro que no mundo
Nas ondas velas pôs em seco lenho,
Dino da eterna pena do profundo,
Se é justa a justa lei, que sigo e tenho!
Nunca juízo algum alto e profundo,
Nem cítara sonora, ou vivo engenho,
Te dê por isso fama nem memória,
Mas contigo se acabe o nome e glória.
O Velho amaldiçoa o homem que fez o primeiro barco ("pôs velas nas ondas"), como merecedor do inferno ("dino da eterna pena do profundo"), se houver justiça como a que ele acredita. Que nunca sejam feitos um alto conceito, nem música ("cítara sonora") ou poesia ("vivo engenho") que eternize sua memória por este feito ("Te dê por isso fama nem memória"), mas que, com o inventor do primeiro barco, morram sua fama, sua reputação ("seu nome") e sua glória.
%u2014 "Trouxe o filho de Jápeto do Céu
O fogo que ajuntou ao peito humano,
Fogo que o mundo em armas acendeu
Em mortes, em desonras (grande engano).
Quanto melhor nos fora, Prometeu,
E quanto para o mundo menos dano,
Que a tua estátua ilustre não tivera
Fogo de altos desejos, que a movera!
Afirma que o fogo que o filho de Jápeto trouxe do céu e deu aos homens, esse fogo o mundo acendeu em armas, em mortes, em desonras. Foi um grande erro ("engano") dar o fogo à humanidade. Teria sido melhor a nós e causado menos dano (prejuízo) ao mundo se a estátua feita por Prometeu não tivesse o fogo do desejo que a movera.
O filho de Jápeto era Prometeu, o titã que roubou o fogo aos deuses e o deu aos homens. Prometeu trouxe o fogo do Olimpo escondido em uma estátua humana. Foi condenado a ficar preso num rochedo enquanto uma águia lhe comia as entranhas.
%u2014 "Não cometera o moço miserando
O carro alto do pai, nem o ar vazio
O grande Arquiteto co'o filho, dando
Um, nome ao mar, e o outro, fama ao rio.
Nenhum cometimento alto e nefando,
Por fogo, ferro, água, calma e frio,
Deixa intentado a humana geração.
Mísera sorte, estranha condição!" %u2014
Se não fosse esse fogo do desejo, o jovem miserável e digno de pena não teria ousado guiar o carro do pai, nem o grande arquiteto e seu filho teriam se arriscado a voar ("cometera o ar vazio"). Um deu nome ao mar e o outro deu fama ao rio. Camões se refere a Faeton ou Faetonte, filho de Apolo, o deus Sol, que foi imprudente e caiu com o carro do pai no rio Eridano e Dédalo, arquiteto do labirinto, que, com cera e penas, construiu asas para si e para seu filho Ícaro que, descuidado, voou rumo ao sol e acabou caindo no mar.
Nenhum empreendimento nobre ou perverso, por qualquer modo realizado ("Por fogo, ferro, água, calma e frio"), o gênero humano ("humana geração") não tenta realizar ("deixa intentado"). É um destino miserável e uma estranha obrigação (ou um estado, um modo de ser esquisito).
O ANTICLÍMAX
O episódio do Velho do Restelo representa um notável contraponto à glorificação das navegações portuguesas intentada por Camões no transcorrer de todo o poema. O professor Alfredo Bosi o considera, portanto, o anticlímax da narrativa. Em seu livro Dialética da Colonização (Companhia das Letras, 1992) afirma que:
A fala do Velho destrói ponto por ponto e mina por dentro o fim orgânico dos Lusíadas, que é cantar a façanha do Capitão, o nome de Aviz, a nobreza guerreira e a máquina mercantil lusitana envolvida no projeto. (...)
A viagem e todo o desígnio que ela enfeixa aparecem como um desastre para a sociedade portuguesa: o campo despovoado, a pobreza envergonhada ou mendiga, os homens válidos dispersos ou mortos, e, por toda parte, adultérios e orfandades. "Ao cheiro desta canela / o reino se despovoa", já dissera Sá de Miranda.
A mudança radical de perspectiva (que dos olhos do Capitão passa para os do Velho do Restelo) dá a medida da força espiritual de um Camões ideológico e contra-ideológico, contraditório e vivo. (...)
No largar da aventura marítima e colonizadora o seu maior escritor orgânico se faria uma consciência perplexa: "Mísera sorte! Estranha condição!"
O poeta admite, portanto, no momento de ápice de sua narrativa, o instante tão sonhado em que a esquadra de Vasco da Gama inicia sua viagem, uma voz contrária à aventura que pretende glorificar.
http://blog.educacaoadventista.org.br/profesrita/index.php?op=post&idcategoria=33
A fala do Velho destrói ponto por ponto e mina por dentro o fim orgânico dos Lusíadas, que é cantar a façanha do Capitão, o nome de Aviz, a nobreza guerreira e a máquina mercantil lusitana envolvida no projeto. (...)
A viagem e todo o desígnio que ela enfeixa aparecem como um desastre para a sociedade portuguesa: o campo despovoado, a pobreza envergonhada ou mendiga, os homens válidos dispersos ou mortos, e, por toda parte, adultérios e orfandades. "Ao cheiro desta canela / o reino se despovoa", já dissera Sá de Miranda.
A mudança radical de perspectiva (que dos olhos do Capitão passa para os do Velho do Restelo) dá a medida da força espiritual de um Camões ideológico e contra-ideológico, contraditório e vivo. (...)
No largar da aventura marítima e colonizadora o seu maior escritor orgânico se faria uma consciência perplexa: "Mísera sorte! Estranha condição!"
O poeta admite, portanto, no momento de ápice de sua narrativa, o instante tão sonhado em que a esquadra de Vasco da Gama inicia sua viagem, uma voz contrária à aventura que pretende glorificar.
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