terça-feira, 22 de novembro de 2016

                                      ILUSTRE CASA DE RAMIRES
Eça de Queirós
Capítulo X
(Fragmento)
Até noite alta Gonçalo, passeando pelo quarto, remoeu a amarga certeza de que sempre, através de toda a sua vida (quase desde o colégio de S. Fiel!), não cessara de padecer humilhações. E todas lhe resultavam de intentos muito simples, tão seguros para qualquer homem como o voo para qualquer ave - só para ele constantemente rematados por dor, vergonha ou perda! A entrada da vida escolhe com entusiasmo um confidente, um irmão, que traz para a quieta intimidade da Torre - e logo esse homem se apodera ligeiramente do coração de Gracinha e ultrajosamente a abandona! Depois concebe o desejo tão corrente de penetrar na Vida Política - e logo o Acaso o força a que se renda e se acolha à influência desse mesmo homem, agora Autoridade poderosa, por ele durante todos esses anos de despeito tão detestada e chasqueada! Depois abre ao amigo, agora restabelecido na sua convivência, a porta dos Cunhais, confiado na seriedade, no rígido orgulho da irmã - e logo a irmã se abandona ao antigo enganador, sem luta, na primeira tarde em que se encontra com ele na sombra favorável dum caramanchão! Agora pensa em casar com uma mulher que lhe oferecia com uma grande beleza uma grande fortuna - e imediatamente um companheiro de Vila-Clara passa e segreda: - "A mulher que escolheste, Gonçalinho, é uma marafona cheia de amantes!" Decerto essa mulher não a amava com um amor nobre e forte! Mas decidira acomodar nos formosos braços dela, muito confortavelmente, a sua sorte insegura - e eis que logo desaba, com esmagadora pontualidade, a humilhação costumada. Realmente o Destino malhava sobre ele com rancor desmedido!
- E por quê? - murmurava Gonçalo, despindo melancolicamente o casaco. - Em vida tão curta, tanta decepção... Por quê? Pobre de mim!
Caiu no vasto leito como numa sepultura - enterrou a face no travesseiro com um suspiro, um enternecido suspiro de piedade por aquela sua sorte tão contrariada, tão sem socorro. E recordava o presunçoso verso do Videirinha, ainda nessa noite proclamado ao violão:
Velha Casa de Ramires Honra e flor de Portugal!
 Como a flor murchara! Que mesquinha honra! E que contraste o do derradeiro Gonçalo, encolhido no seu buraco de Santa Irenéia, com esses grandes avós Ramires cantados pelo Videirinha - todos eles, se História e Lenda não mentiam, de vidas tão triunfais e sonoras! Não! nem sequer deles herdara a qualidade por todos herdada através dos tempos - a valentia fácil. Seu pai ainda fora o bom Ramires destemido - que na falada desordem da romaria da Riosa avançava com um guarda-sol contra três clavinas engatilhadas. Mas ele... Ali, no segredo do quarto apagado, bem o podia livremente gemer - ele nascera com a falha, a falha de pior desdouro, essa irremediável fraqueza da carne que, irremediavelmente, diante de um perigo, uma ameaça, uma sombra, o forçava a recuar, a fugir... A fugir de um Casco. A fugir dum malandro de suíças louras que, numa estrada e depois numa venda, o insulta sem motivo, para meramente ostentar pimponice e arreganho. Ah vergonhosa carne, tão espantadiça!
E a Alma... Nessa calada treva do quarto bem o podia reconhecer também, gemendo. A mesma fraqueza lhe tolhia a Alma! Era essa fraqueza que o abandonava a qualquer influência, logo por ela levado como folha seca por qualquer sopro. Porque a prima Maria uma tarde adoça os espertos olhos e lhe aconselha por trás do leque que se interesse pela D. Ana - logo ele, fumegando de esperança, ergue sobre o dinheiro e a beleza de D. Ana uma presunçosa torre de ventura e luxo. E a Eleição? essa desgraçada Eleição? Quem o empurrara para a Eleição, e para a reconciliação indecente com o Cavaleiro, e para os desgostos daí emanados? O Gouveia, só com leves argúcias, murmuradas por cima do cache-nez desde a loja do Ramos até a esquina do Correio! Mas quê! mesmo dentro da sua Torre era governado pelo Bento, que superiormente lhe impunha gostos, dietas, passeios, e opiniões e gravatas! - Homem de tal natureza, por mais bem dotado na Inteligência, é massa inerte a que o Mundo constantemente imprime formas várias e contrárias. O João Gouveia fizera dele um candidato servil. O Manuel Duarte poderia fazer dele um beberrão imundo. O Bento facilmente o levaria a atar ao pescoço, em vez duma gravata de seda, uma coleira de couro! Que miséria! E todavia o Homem só vale pela Vontade - só no exercício da Vontade reside o gozo da Vida. Porque se a Vontade bem exercida encontra em torno submissão - então é a delícia do domínio sereno; se encontra em torno resistênciam - então é a delícia maior da luta interessante. Só não sai gozo forte e viril da inércia que se deixa arrastar mudamente, num silêncio e macieza de cera... Mas ele, ele, descendendo de tantos varões famosos pelo Querer - não conservaria, escondida algures no seu Ser, dormente e quente como uma brasa sob cinza, uma parcela dessa energia hereditária?... Talvez! nunca porém nesse peco e encafuado viver de Santa Irenéia a fagulha despertaria, ressaltaria em chama intensa e útil. Não! pobre dele! Mesmo nos movimentos da Alma onde todo o homem realiza a liberdade pura - ele sofreria sempre a opressão da Sorte inimiga!
Com outro suspiro mais se enterrou, se escondeu sob a roupa. Não adormecia, a noite findava - já o relógio de charão, no corredor, batera cavamente as quatro horas. E então, através das pálpebras cerradas, no confuso cansaço de tantas tristezas revolvidas, Gonçalo percebeu, através da treva do quarto, destacando palidamente da treva, faces lentas que passavam...
Eram faces muito antigas, com desusadas barbas ancestrais, com cicatrizes de ferozes ferros, umas ainda flamejando como no fragor de uma batalha, outras sorrindo majestosamente como na pompa duma gala - todas dilatadas pelo uso soberbo de mandar e vencer. E Gonçalo, espreitando por sobre a borda do lençol, reconhecia nessas faces as verídicas feições de velhos Ramires, ou já assim contempladas em denegridos retratos, ou por ele assim concebidas, como concebera as de Tructesindo, em concordância com a rijeza e esplendor dos seus feitos.
Vagarosas, mais vivas, elas cresciam dentre a sombra que latejava espessa e como povoada. E agora os corpos emergiam também, robustíssimos corpos cobertos de saios de malha ferrugenta, apertados por arneses de aço lampejante, embuçados e fuscos mantos de revoltas pregas, cingidos por faustosos gibões de brocado onde cintilavam as pedrarias de colares e cintos - e armados todos, com as armas todas da História, desde a dava goda de raiz de roble eriçada de puas até o espadim de sarau enlaçarotado de seda e ouro.
Sem temor, erguido sobre o travesseiro, Gonçalo não duvidava da realidade maravilhosa! Sim! eram os seus avós Ramires, os seus formidáveis avós históricos, que, das suas tumbas dispersas corriam, se juntavam na velha casa de Santa Irenéia nove vezes secular - e formavam em torno do seu leito, do leito em que ele nascera, como a Assembléia majestosa da sua raça ressurgida. E até mesmo reconhecia alguns dos mais esforçados, que agora, com o repassar constante do Poemeto do tio Duarte e o Videirinha gemendo fielmente o seu "fado", lhe andavam sempre na imaginação...
Aquele além, com o brial branco a que a cruz vermelha enchia o peitoral, era certamente Gutierres Ramires, o d'Ultramar como quando corria da sua tenda para a escalada de Jerusalém. No outro, tão velho e formoso, que estendia o braço, ele adivinhava Egas Ramires, negando acolhida no seu puro solar a El-Rei D. Fernando e à adúltera Leonor! Esse, de crespa barba ruiva, que cantava sacudindo o pendão real de Castela, quem, senão Diogo Ramires, o Trovador ainda na alegria da radiosa manhã de Aljubarrota? Diante da incerta claridade do espelho tremiam as fofas plumas escarlates do monão de Paio Ramires, que se armava para salvar S. Luís Rei de França. Levemente balançado, como pelas ondas humildes dum mar vencido, Rui Ramires sorria às naus inglesas que ante aproa da sua Capitânia submissamente amainavam por Portugal. E, encostado ao poste do leito, Paulo Ramires, pajem do Guião de ElRei nos campos fatais de Alcácer, sem elmo, rota a couraça, inclinava para ele a sua face de donzel, com a doçura grave dum avô enternecido...
Então, por aquela ternura atenta do mais poético dos Ramires, Gonçalo sentiu que a sua Ascendência toda o amava - e da escuridão das tumbas dispersas acudira para o velar e socorrer na sua fraqueza. Com um longo gemido, arrojando a roupa, desafogou, dolorosamente contou aos seus avós ressurgidos a arrenegada Sorte que o combatia e que sobre a sua vida, sem descanso, amontoava tristeza, vergonha e perda! E eis que subitamente um ferro faiscou na treva, com um abafado brado: - "Neto, doce neto, toma a minha lança nunca partida!" E logo o punho duma clara espada lhe roçou o peito, com outra grave voz que o animava: -"Neto, doce neto, toma a espada pura que lidou em Ourique1 E depois uma acha de coriscante gume bateu no travesseiro, ofertada com altiva certeza: - "Que não derribará essa acha, que derribou as portas de Arzila?...”

1. O narrador conta que Gonçalo remoía no quarto as humilhações que passara. Qual dos fatos a seguir não faz parte das humilhações remoídas por Gonçalo?
a) A relação mal sucedida de sua irmã Gracinha com seu confidente, André Cavaleiro.
b) O aparecimento dos Ramires em seu quarto.
c) Ter que submeter-se a influência do ex-confidente ao tentar entrar na vida política.
d) Ser traído pela mulher com quem decidira casar.
2. “Em vida tão curta tanta decepção... Por quê? Pobre de mim!”. Podemos perceber nesse trecho:
a) A expressão de um sentimento de raiva.
b) A expressão de um sentimento de alívio.
c) A expressão de um sentimento de ansiedade.
d) A expressão de um sentimento de pena.
3. Qual é a qualidade hereditária dos Ramires?
a) a inteligência
b) a liderança
c) a valentia
d) a beleza
4. De acordo com o texto, o que é “a realidade maravilhosa”?
a) O sonho, a visão de Gonçalo.
b) As pretensões políticas de Gonçalo.
c) A reconciliação com seu antigo confidente.
d) D. Ana, sua presunçosa torre de ventura e luxo.
5. Ainda de acordo com o texto, os antepassados de Gonçalo ressurgiram para:
a) Cobrar-lhe uma atitude corajosa.
b) Relembrar-lhe do passado glorioso.
c) Dar-lhe força e incentivá-lo.
d) Vigiar-lhe as ações.
Gabarito

1. b , 2. d, 3. c, 4. a,  5. c

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