ILUSTRE
CASA DE RAMIRES
Eça de Queirós
Capítulo X
(Fragmento)
Até noite alta
Gonçalo, passeando pelo quarto, remoeu a amarga certeza de que sempre, através
de toda a sua vida (quase desde o colégio de S. Fiel!), não cessara de padecer
humilhações. E todas lhe resultavam de intentos muito simples, tão seguros para
qualquer homem como o voo para qualquer ave - só para ele constantemente
rematados por dor, vergonha ou perda! A entrada da vida escolhe com entusiasmo
um confidente, um irmão, que traz para a quieta intimidade da Torre - e logo
esse homem se apodera ligeiramente do coração de Gracinha e ultrajosamente a
abandona! Depois concebe o desejo tão corrente de penetrar na Vida Política - e
logo o Acaso o força a que se renda e se acolha à influência desse mesmo homem,
agora Autoridade poderosa, por ele durante todos esses anos de despeito tão
detestada e chasqueada! Depois abre ao amigo, agora restabelecido na sua
convivência, a porta dos Cunhais, confiado na seriedade, no rígido orgulho da
irmã - e logo a irmã se abandona ao antigo enganador, sem luta, na primeira tarde
em que se encontra com ele na sombra favorável dum caramanchão! Agora pensa em
casar com uma mulher que lhe oferecia com uma grande beleza uma grande fortuna
- e imediatamente um companheiro de Vila-Clara passa e segreda: - "A
mulher que escolheste, Gonçalinho, é uma marafona cheia de amantes!"
Decerto essa mulher não a amava com um amor nobre e forte! Mas decidira
acomodar nos formosos braços dela, muito confortavelmente, a sua sorte insegura
- e eis que logo desaba, com esmagadora pontualidade, a humilhação costumada.
Realmente o Destino malhava sobre ele com rancor desmedido!
- E por quê? -
murmurava Gonçalo, despindo melancolicamente o casaco. - Em vida tão curta,
tanta decepção... Por quê? Pobre de mim!
Caiu no vasto
leito como numa sepultura - enterrou a face no travesseiro com um suspiro, um
enternecido suspiro de piedade por aquela sua sorte tão contrariada, tão sem
socorro. E recordava o presunçoso verso do Videirinha, ainda nessa noite
proclamado ao violão:
Velha Casa de Ramires Honra e
flor de Portugal!
Como a flor murchara! Que mesquinha honra! E
que contraste o do derradeiro Gonçalo, encolhido no seu buraco de Santa
Irenéia, com esses grandes avós Ramires cantados pelo Videirinha - todos eles,
se História e Lenda não mentiam, de vidas tão triunfais e sonoras! Não! nem
sequer deles herdara a qualidade por todos herdada através dos tempos - a
valentia fácil. Seu pai ainda fora o bom Ramires destemido - que na falada
desordem da romaria da Riosa avançava com um guarda-sol contra três clavinas engatilhadas.
Mas ele... Ali, no segredo do quarto apagado, bem o podia livremente gemer -
ele nascera com a falha, a falha de pior desdouro, essa irremediável fraqueza
da carne que, irremediavelmente, diante de um perigo, uma ameaça, uma sombra, o
forçava a recuar, a fugir... A fugir de um Casco. A fugir dum malandro de
suíças louras que, numa estrada e depois numa venda, o insulta sem motivo, para
meramente ostentar pimponice e arreganho. Ah vergonhosa carne, tão espantadiça!
E a Alma...
Nessa calada treva do quarto bem o podia reconhecer também, gemendo. A mesma
fraqueza lhe tolhia a Alma! Era essa fraqueza que o abandonava a qualquer
influência, logo por ela levado como folha seca por qualquer sopro. Porque a
prima Maria uma tarde adoça os espertos olhos e lhe aconselha por trás do leque
que se interesse pela D. Ana - logo ele, fumegando de esperança, ergue sobre o
dinheiro e a beleza de D. Ana uma presunçosa torre de ventura e luxo. E a
Eleição? essa desgraçada Eleição? Quem o empurrara para a Eleição, e para a
reconciliação indecente com o Cavaleiro, e para os desgostos daí emanados? O
Gouveia, só com leves argúcias, murmuradas por cima do cache-nez desde a loja
do Ramos até a esquina do Correio! Mas quê! mesmo dentro da sua Torre era
governado pelo Bento, que superiormente lhe impunha gostos, dietas, passeios, e
opiniões e gravatas! - Homem de tal natureza, por mais bem dotado na
Inteligência, é massa inerte a que o Mundo constantemente imprime formas várias
e contrárias. O João Gouveia fizera dele um candidato servil. O Manuel Duarte
poderia fazer dele um beberrão imundo. O Bento facilmente o levaria a atar ao
pescoço, em vez duma gravata de seda, uma coleira de couro! Que miséria! E
todavia o Homem só vale pela Vontade - só no exercício da Vontade reside o gozo
da Vida. Porque se a Vontade bem exercida encontra em torno submissão - então é
a delícia do domínio sereno; se encontra em torno resistênciam - então é a
delícia maior da luta interessante. Só não sai gozo forte e viril da inércia
que se deixa arrastar mudamente, num silêncio e macieza de cera... Mas ele,
ele, descendendo de tantos varões famosos pelo Querer - não conservaria,
escondida algures no seu Ser, dormente e quente como uma brasa sob cinza, uma
parcela dessa energia hereditária?... Talvez! nunca porém nesse peco e
encafuado viver de Santa Irenéia a fagulha despertaria, ressaltaria em chama
intensa e útil. Não! pobre dele! Mesmo nos movimentos da Alma onde todo o homem
realiza a liberdade pura - ele sofreria sempre a opressão da Sorte inimiga!
Com outro
suspiro mais se enterrou, se escondeu sob a roupa. Não adormecia, a noite
findava - já o relógio de charão, no corredor, batera cavamente as quatro
horas. E então, através das pálpebras cerradas, no confuso cansaço de tantas
tristezas revolvidas, Gonçalo percebeu, através da treva do quarto, destacando
palidamente da treva, faces lentas que passavam...
Eram faces
muito antigas, com desusadas barbas ancestrais, com cicatrizes de ferozes
ferros, umas ainda flamejando como no fragor de uma batalha, outras sorrindo
majestosamente como na pompa duma gala - todas dilatadas pelo uso soberbo de
mandar e vencer. E Gonçalo, espreitando por sobre a borda do lençol, reconhecia
nessas faces as verídicas feições de velhos Ramires, ou já assim contempladas
em denegridos retratos, ou por ele assim concebidas, como concebera as de
Tructesindo, em concordância com a rijeza e esplendor dos seus feitos.
Vagarosas,
mais vivas, elas cresciam dentre a sombra que latejava espessa e como povoada.
E agora os corpos emergiam também, robustíssimos corpos cobertos de saios de
malha ferrugenta, apertados por arneses de aço lampejante, embuçados e fuscos
mantos de revoltas pregas, cingidos por faustosos gibões de brocado onde
cintilavam as pedrarias de colares e cintos - e armados todos, com as armas
todas da História, desde a dava goda de raiz de roble eriçada de puas até o
espadim de sarau enlaçarotado de seda e ouro.
Sem temor,
erguido sobre o travesseiro, Gonçalo não duvidava da realidade maravilhosa!
Sim! eram os seus avós Ramires, os seus formidáveis avós históricos, que, das
suas tumbas dispersas corriam, se juntavam na velha casa de Santa Irenéia nove
vezes secular - e formavam em torno do seu leito, do leito em que ele nascera,
como a Assembléia majestosa da sua raça ressurgida. E até mesmo reconhecia
alguns dos mais esforçados, que agora, com o repassar constante do Poemeto do
tio Duarte e o Videirinha gemendo fielmente o seu "fado", lhe andavam
sempre na imaginação...
Aquele além,
com o brial branco a que a cruz vermelha enchia o peitoral, era certamente
Gutierres Ramires, o d'Ultramar como quando corria da sua tenda para a escalada
de Jerusalém. No outro, tão velho e formoso, que estendia o braço, ele
adivinhava Egas Ramires, negando acolhida no seu puro solar a El-Rei D.
Fernando e à adúltera Leonor! Esse, de crespa barba ruiva, que cantava
sacudindo o pendão real de Castela, quem, senão Diogo Ramires, o Trovador ainda
na alegria da radiosa manhã de Aljubarrota? Diante da incerta claridade do
espelho tremiam as fofas plumas escarlates do monão de Paio Ramires, que se
armava para salvar S. Luís Rei de França. Levemente balançado, como pelas ondas
humildes dum mar vencido, Rui Ramires sorria às naus inglesas que ante aproa da
sua Capitânia submissamente amainavam por Portugal. E, encostado ao poste do
leito, Paulo Ramires, pajem do Guião de ElRei nos campos fatais de Alcácer, sem
elmo, rota a couraça, inclinava para ele a sua face de donzel, com a doçura
grave dum avô enternecido...
Então, por
aquela ternura atenta do mais poético dos Ramires, Gonçalo sentiu que a sua
Ascendência toda o amava - e da escuridão das tumbas dispersas acudira para o
velar e socorrer na sua fraqueza. Com um longo gemido, arrojando a roupa,
desafogou, dolorosamente contou aos seus avós ressurgidos a arrenegada Sorte
que o combatia e que sobre a sua vida, sem descanso, amontoava tristeza,
vergonha e perda! E eis que subitamente um ferro faiscou na treva, com um
abafado brado: - "Neto, doce neto, toma a minha lança nunca partida!"
E logo o punho duma clara espada lhe roçou o peito, com outra grave voz que o
animava: -"Neto, doce neto, toma a espada pura que lidou em Ourique1 E
depois uma acha de coriscante gume bateu no travesseiro, ofertada com altiva
certeza: - "Que não derribará essa acha, que derribou as portas de Arzila?...”
1. O narrador conta que Gonçalo remoía no quarto as humilhações que
passara. Qual dos fatos a seguir não faz parte das humilhações remoídas por
Gonçalo?
a) A relação mal sucedida de sua
irmã Gracinha com seu confidente, André Cavaleiro.
b) O aparecimento dos Ramires em
seu quarto.
c) Ter que submeter-se a
influência do ex-confidente ao tentar entrar na vida política.
d) Ser traído pela mulher com
quem decidira casar.
2. “Em vida tão curta tanta decepção... Por quê? Pobre de mim!”.
Podemos perceber nesse trecho:
a) A expressão de um sentimento
de raiva.
b) A expressão de um sentimento
de alívio.
c) A expressão de um sentimento
de ansiedade.
d) A expressão de um sentimento
de pena.
3. Qual é a qualidade hereditária dos Ramires?
a) a inteligência
b) a liderança
c) a valentia
d) a beleza
4. De acordo com o texto, o que é “a realidade maravilhosa”?
a) O sonho, a visão de Gonçalo.
b) As pretensões políticas de
Gonçalo.
c) A reconciliação com seu antigo
confidente.
d) D. Ana, sua presunçosa torre
de ventura e luxo.
5. Ainda de acordo com o texto, os antepassados de Gonçalo
ressurgiram para:
a) Cobrar-lhe uma atitude
corajosa.
b) Relembrar-lhe do passado
glorioso.
c) Dar-lhe força e incentivá-lo.
d) Vigiar-lhe as ações.
Gabarito
1. b , 2. d, 3. c, 4. a, 5. c
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