POLICARPO QUARESMA
Lima Barreto
Capítulo I - A lição de violão
(fragmento)
Vivendo em casa própria e tendo
outros rendimentos além do seu ordenado, o Major Quaresma podia levar um trem
de vida superior aos seus recursos burocráticos, gozando, por parte da
vizinhança, de consideração e respeito de homem abastado.
Não
recebia ninguém, vivia num isolamento monacal, embora fosse cortês com os
vizinhos que o julgavam esquisito e misantropo. Se não tinha amigos na
redondeza, não tinha inimigos, e a única desafeição que merecera, fora a do
doutor Segadas, um clínico afamado no lugar, que não podia admitir que Quaresma
tivesse livros: “Se não era formado, para quê? Pedantismo!”
O
subsecretário não mostrava os livros a ninguém, mas acontecia que, quando se
abriam as janela da sala de sua livraria, da rua poder-se-iam ver as estantes
pejadas de cima a baixo.
Eram esses os seus hábitos;
ultimamente, porém, mudara um pouco; e isso provoca comentários no bairro. Além
do compadre e da filha, as únicas pessoas que o visitavam até então, nos
últimos dias, era visto entrar em sua casa, três vezes por semana e em dias
certos, um senhor baixo, magro, pálido, com um violão agasalhado numa bolsa de
camurça. Logo pela primeira vez o caso intrigou a vizinhança. Um violão, em
casa tão respeitável! Que seria?
E, na mesma tarde, uma das mais
lindas vizinhas do major convidou uma amigas, e ambas levaram um tempo perdido,
de cá para lá, a palmilhar o passeio, esticando a cabeça, quando passavam
diante da janela aberta do esquisito subsecretário.
Não foi inútil a espionagem.
Sentado no sofá, tendo ao lado o tal sujeito, empunhando o “pinho” na posição
de tocar, o major, atentamente, ouvia: “Olhe, major, assim”. E as cordas
vibravam vagarosamente a nota ferida; em seguida, o mestre aduzia: “É ‘ré’,
aprendeu?”
Mas não foi preciso pôr na carta;
a vizinhança concluiu logo que o major aprendia a tocar violão. Mas que coisa?
Um homem tão sério metido nessas malandragens!
Uma tarde de sol – sol de março,
forte e implacável – aí pelas cercanias das quatro horas, as janelas de uma
erma rua de São Januário povoaram-se rápida e repentinamente, de um e de outro
lado. Até da casa do general vieram moças à janela! Que era? Um batalhão? Um
incêndio? Nada disto: o Major Quaresma, de cabeça baixa, com pequenos passos de
boi de carro, subia a rua, tendo debaixo do braço um violão impudico.
É verdade que a guitarra vinha
decentemente embrulhada em papel, mas o vestuário não lhe escondia
inteiramente as formas. À vista de tão escandaloso fato, a consideração e o
respeito que o Major Policarpo Quaresma merecia nos arredores de sua casa,
diminuíram um pouco. Estava perdido, maluco, diziam. Ele, porém, continuou
serenamente nos seus estudos, mesmo porque não percebeu essa diminuição.
Quaresma era um homem pequeno,
magro, que usava pince-nez, olhava sempre baixo, mas, quando fixava alguém ou
alguma cousa, os seus olhos tomavam, por detrás das lentes, um forte brilho de
penetração e era como se ele quisesse ir à alma da pessoa ou da cousa que
fixava.
Contudo,
sempre os trazia baixos, como se se guiasse pela ponta do cavanhaque que lhe
enfeitava o queixo. Vestia-se sempre de fraque, preto, azul, ou de cinza, de
pano listrado, mas sempre de fraque, e era raro que não se cobrisse com uma
cartola de abas curtas e muito alta, feita segundo um figurino antigo de que
ele sabia com precisão a época.
Quando entrou em casa, naquele dia, foi a irmã quem lhe abriu a
porta, perguntando:
– Janta já?
– Ainda não. Espere um pouco o
Ricardo que vem jantar hoje conosco.
– Policarpo, você precisa tomar
juízo. Um homem de idade, com posição, respeitável, como você é, andar metido
com esse seresteiro, um quase capadócio – não é bonito!
O major descansou o chapéu-de-sol
– um antigo chapéu-de-sol, com a haste inteiramente de madeira, e um cabo de
volta, incrustado de pequenos losangos de madrepérola – e respondeu:
– Mas você está muito enganada,
mana. É preconceito supor-se que todo o homem que toca violão é um
desclassificado. A modinha é a mais genuína expressão da poesia nacional e o
violão é o instrumento que ela pede. Nós é que temos abandonado o gênero, mas
ele já esteve em honra, em Lisboa, no século passado, com o Padre Caldas, que
teve um auditório de fidalgas. Beckford, um inglês notável, muito o elogia.
– Mas isso foi em outro tempo;
agora...
– Que tem isso, Adelaide? Convém
que nós não deixemos morrer as nossas tradições, os usos genuinamente
nacionais...
– Bem, Policarpo, eu não quero
contrariar você; continue lá com as suas manias.
............
A razão tinha que
ser encontrada numa disposição particular de seu espírito, no forte sentimento
que guiava sua vida. Policarpo era patriota. Desde moço, aí pelos vinte anos, o
amor da Pátria tomou-o todo inteiro. Não fora o amor comum, palrador e vazio;
fora um sentimento sério, grave e absorvente. Nada de ambições políticas ou
administrativas; o que Quaresma pensou, ou melhor: o que o patriotismo o fez
pensar, foi um conhecimento inteiro do Brasil, levando-o a meditações sobre os
seus recursos, para depois então apontar os remédios, as medidas progressivas,
com pleno conhecimento de causa.
Estudo do texto
01. Identifique no texto características físicas e
psicológicas do Major Quaresma.
02. Onde se ambienta a ação do trecho lido?
03. Que novidade rompe a rotina mantida pelo major?
04. O que garante a Quaresma o prestígio que ele goza em seu
bairro, apesar de ser esquisitão?
05. Em que momento o prestígio sofre um abalo? Por quê?
06. Como reagiram os vizinhos ao verem o major carregando um
violão?
07. Por que Quaresma decidiu estudar violão? O que essa
decisão mostra sobre sua personalidade?
08. Relacione as palavras do texto com o seu significado.
(A) misantropo (B) pejadas (C) palmilhar
(D) aduzia (E)impudico (F) capadócio
( ) obsceno
( ) a quem aborrece
a companhia humana
( )trapaceiro
( ) percorrer
( ) ocupar sem
deixar espaço
Respostas:
01. Físicas: pequeno, magro, usava pince-nez, tinha
cavanhaque e usava fraque.
Psicológicas:
excêntrico, metódico, esquisito, misantropo, sério e gostava de ler livros.
02. Na casa do major, na rua São Januário.
03. As aulas de violão.
04. Seu bem-estar econômico o transforma numa figura
respeitável.
05. Quando começa a ter aulas de violão, porque na época havia
forte preconceito contra esse instrumento musical, considerado coisa de
malandro.
06. Provocou uma reação coletiva de espanto e reprovação.
07. Porque aprender significava não deixar morrer as nossas
tradições, os usos genuinamente nacionais. Seu aprendizado é um ato de
patriotismo.
08.
(E) obsceno
(A) a quem aborrece a companhia humana
(F) trapaceiro
(C) percorrer
(B) ocupar sem deixar espaço
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