terça-feira, 30 de setembro de 2014

Didi dá que fazer

Didi dá que fazer

Narrador
did da que fazer 
Quem me contou esta história foi o Rogério, um rapazinho meu amigo, que morava no 2º direito do prédio onde eu moro. Deixou de ser meu vizinho há coisa de um ano, pouco mais ou menos. O pai dele foi colocado em Estrasburgo, que fica em França, perto da Alemanha, e, como é bom de ver, a família mudou-se também.
Quando se foi embora, o Rogério passou por minha casa para se despedir. Prometeu que me escreveria muitas vezes, mas já se sabe: fora um postal com vistas da cidade e um cartão de Boas-Festas, não voltei a ter notícias dele.
E senti-lhe a falta! Sim, tive, sinceramente, saudades do Rogério e da Didi.
“Quem será esta Didi que aqui aparece de surpresa?”, perguntam vocês. Didi é nome de gato, ou melhor, de gata, da gatinha do Rogério, uma simpática e atrevida bichana que, quase todos os dias, eu tinha de ir levar ao 2º direito. Entrava-me pela janela e saía ao colo, a princesa de olhos azuis e rabinho alçado.
Moro no último andar de uma casa amansardada com vista para o telhado e para o rio. Os telhados, como sabes, são território exclusivo dos gatos. Por contrato antigo, os bichanos tomaram conta dos telhados das cidades e ali reinam e ditam leis. Que ninguém se atreva a contestar-lhes o direito, porque, se não, pode haver guerra entre gatos e homens, o que seria uma verdadeira desgraça, principalmente para os homens.
Pois a Didi subia ao telhado pela escada de ferro, em caracol, a escada das traseiras, mas, para descer, passava sempre por minha casa. Devia ter tonturas com a escada de caracol, nas curvas da descida, ou então simpatizava muito comigo. Nunca cheguei a saber.
Fosse porque fosse, de Verão ou de Inverno, tinha sempre a janela do meu quarto aberta, não se desse o caso de sua excelência querer entrar… Que frio eu apanhei em certos dias!
Todas as vezes que, com ela ao colo, tocava à campainha do 2º direito, Dona Didi agradecia-me com um ronrom muito expressivo.
— Aqui lhe trago a sua gatinha — dizia eu para a mãe do Rogério, que era quem abria a porta.
— Para que se esteve a incomodar… Deixasse-a no patamar da escada e ela que viesse pelo seu pé.
— Não, mãezinha, que ela podia fugir para a rua — dizia, lá de dentro, o Rogério. — Com a escada de salvação não há perigo, porque está trancada em baixo, mas, pela escada da frente, punha-se na rua num instante. E os carros?
Eu, pelo meu lado, aprovava as cautelas do Rogério. A mãe, embora não dissesse, também aprovava.
Ora, no outro dia, o Rogério voltou. Está de férias, em casa de uns tios, e demora-se um mês por cá, para matar saudades e rever amigos. Perguntei-lhe pela Didi, e neste ponto é que entra a aventura que ele me contou.
O prédio para onde foram viver, em Estrasburgo, pouco diferia do nosso: vários andares, vários inquilinos, escada principal, escada de serviço, etc. Quem, a princípio, estranhou mais foi a Didi, mas depressa achou meio de subir para o telhado, e aí estava ela onde e como queria…
Admito que tivesse sentido uma certa falta do vizinho do último andar… Lá se remediou à sua maneira. Talvez nem sequer já se lembrasse de mim, a ingrata!
Os hábitos dos gatos respeitam-se e não se discutem. No entanto, em certas ocasiões, é preciso pensar por eles, como vão ver.
Na cidade para onde o Rogério tinha ido, nevava e neva sempre, durante o Inverno. Para o meu amigo, o espetáculo da neve a cair, em flocos que parecem penas brancas, era uma maravilhosa novidade. Para a Didi não seria menos. Mas havia o problema do telhado, que ficava escorregadio e perigoso sempre que nevava. Por isso, a Didi foi proibida de saltar para o telhado, o que ela não conseguiu compreender.
Um dia, escapou-se. Quando o Rogério voltou da escola, deram-lhe a notícia. A Didi tinha fugido para o telhado e não conseguia descer.
— Chamamos os bombeiros — decidiu o pai.
E se a Didi se assustava? À vista de estranhos, podia desequilibrar-se e…
A tarde correu depressa, sem que se achasse uma solução.
A pobrezinha, no telhado, miava. Devia estar cheia de frio. O que fazer?
O meu amigo Rogério, sem dizer nada a ninguém, o que foi uma imprudência, subiu as escadas, abriu a muito custo uma claraboia e pôs os pés no telhado, tentando não se desequilibrar. Deu um passo, dois passos… Estava escuro, muito escuro, e não havia meio de conseguir ver a Didi, que tinha o pêlo da cor da noite. O Rogério chamou, primeiro baixinho, depois mais alto:
— Didi, sou eu. Vem cá, Didi.
Nem um ronrom, nem um miado, e o céu cada vez mais escuro. Ele a dar mais um passo resvaladiço, e um peso inesperado a saltar-lhe para os ombros. Era a Didi, tiritante, que lhe dava marradinhas no pescoço e se queixava do frio, quase sem voz para um terno ronrom.
— Tivemos de a aquecer junto da lareira e de a cobrir com cobertores, porque a Didi não parava de espirrar — contou o Rogério.
E aqui acaba a aventura verdadeira, trazida pelo meu amigo, dos confins da Europa comunitária. A Didi, cidadã europeia, um dia que regresse a Portugal, já tem muito que contar aos outros gatos do nosso telhado…

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