A RUA
Bem sei que muitas vezes,
o único remédio
é adiar tudo. É adiar a sede, a fome, a viagem,
a dívida, o divertimento,
o pedido de emprego, ou a própria alegria.
A esperança é também uma forma
de contínuo adiamento.
Sei que é preciso prestigiar a esperança,
numa sala de espera.
Mas sei também que espera significa luta e não, apenas,
esperança sentada.
Não abdicação diante da vida.
A esperança
nunca é a forma burguesa, sentada e tranqüila da espera.
Nunca é a figura de mulher
do quadro antigo.
Sentada, dando milho aos pombos.
(Um dia depois do outro, 1947.)
A SINTAXE DO ADEUS
O frio que a morte traz
quem o sente não é o morto.
O morto apenas esfria.
É o frio do calafrio...
E são os vivos que sentem.
Também os vivos têm medo
de olhar nos olhos do morto.
Ah, o terrível segredo.
E alguém, com dedos de rosa
vem e automaticamente
pra que o morto não nos veja,
lhe fecha as pálpebras como
a duas pétalas e adeus.
A-deus quer dizer sem Deus.
SERENATA SINTÉTICA
Rua
torta.
Lua
morta.
Tua
porta.
IMEMORIAL
Não fui quem sou, quando nasci.
Nem sou quem sou, quando amo.
Nem quando sofro.
Porque coexisto. Porque a angústia
é uma herança.
Só me aproximo de mim mesmo
quando fujo,
atravesso a fronteira,
ou me defendo, ou fico triste.
Ou quando sinto a rosa
secreta e quente da vergonha
subir-me à face.
O mar me bate à porta,
como um grito da origem.
Mas como descobrir
a onda imemorial que me trouxe?
(Um dia após o outro, 1947.)
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