terça-feira, 9 de setembro de 2014



                                 BULLYING, TOMATES E ATITUDE


 Eu era um menino pacato e sossegado, por natureza. Bom aluno, trabalhador (engraxate na parte da tarde), batia bem minha bolinha e tinha lá outros predicados. 

Nessa época, os militares alardeavam um tal "milagre econômico" e seus generais, entre uísques, ainda comemoravam a conquista da Copa Jules Rimet. 

 No pátio da escola em que eu estudava, na hora do recreio, após nos servir com a sopa diária, reuníamos pra jogar nossa “pelada”. Num desses jogos, por causa de uma falta, discuti com outro aluno, iniciamos um bate-boca e quando virei de costas ele veio correndo, por trás, e me derrubou no chão. Eu confesso que “amarelei”. A turma do deixa disso nos separou e ele saiu prometendo que ia me esperar na saída, com a clássica frase: -“Vou te pegar lá fora”!

 Quando bateu o sinal, pouco antes do meio dia, eu saí pela porta da frente, me esquivando, e quando pensei que ele tivesse esquecido, lá estava o Joacir , esse era o nome dele, junto com meia dúzia de outros meninos. Apanhei muito naquele dia, só consegui escapar quando o pipoqueiro Lorêdo segurou-o e me mandou correr pra casa. Após aquele dia minha vida escolar virou uma tortura. O Joacir não podia me ver e já me cercava, dando empurrões, petelecos, chutes, entre outras humilhações.

 Fisicamente eu não era menor que ele, mas como eu já havia sucumbido, tinha medo, ou melhor, tinha pavor de seus olhos predadores. Esse meu medo travava qualquer reação de minha parte. Quando ouvia o nome do Joacir eu  tremia. Ir à escola passou a ser um tormento na minha vida. Eu tinha vergonha de contar o que estava acontecendo em casa. 

 Perseguido e humilhado, comecei a cabular aulas. Num dia eu dava a desculpa de estar doente, em outro eu fingia ir pra escola e ficava escondido no campo do seminário, esperando o horário de voltar pra casa. Pensei em conversar com o Padre Bernardino e conseguir uma vaga de seminarista. Mas como justificar tal solicitação?

 Cheguei a ficar uma semana inteira, por puro medo, sem ir à escola. Numa das minhas fugas, num dia chuvoso, por conta e risco decidi que iria à aula, no dia seguinte, enfrentaria o Joacir nem que eu morresse de tanto apanhar.

 Voltei para casa e minha mãe, coitada, juntou as últimas moedas, pedindo para que eu tirasse o uniforme e fosse comprar um quilo de tomates no bar do Cadiô (Kazuo o nome correto).

Quando eu retornava, em frente a horta da Dona Iraci, que era cercada por taquaras, ouvi a voz aterrorizante do Joacir: - Pára aí Marreco (era meu apelido), o que é isso que está levando?  Antes que eu respondesse, ele bateu no saquinho de tomates. Uns rolaram pelo chão, outros fiquei segurando para não cair, enquanto seus amigos ficaram à espreita, rindo da situação.

Para mostrar poder ele emendou: - Não vai levar esses tomates não, vai enfiar todos nessas taquaras aí. Eu tremia e chorava de medo.  Comecei a fincar os tomates naquelas pontas de bambu, um a um. Quando eu cravava o quarto ou quinto tomate percebi que, no lugar da taquara, havia um pedaço de pau. que estava solto e dependurado apenas por um prego. 
  
 Nesse momento, o medo se transformou em raiva. Arranquei, bruscamente, aquela madeira e virei com prego e tudo, acertando no lado direito do rosto do Joacir. A pancada foi tão forte que chegou a estalar. Ele caiu, zonzo e vertendo em sangue. Antes que ele levantasse iniciei uma sessão de pauladas em sua cabeça, costas, barriga ou onde o pau pegasse. Ele gritava desesperado, seus amigos fugiram todos, sua camiseta escolar, branca, parecia mais a camiseta do Zé Dirceu, de tão vermelha que ficou, e eu não parava de bater. Até que o senhor Zé Gordinho me segurou pelos braços e me tomou o porrete. Ele correu cambaleante, chorando e gritando de dor.

 Resgatei os tomates, todos, e os levei para casa. Fiquei sumido até anoitecer, esperando por uma surra de minha mãe (achava que daria até polícia). Para minha surpresa ninguém apareceu para reclamar do massacre. Fui dormir aliviado, feito um gladiador após uma vitória, com a certeza que na manhã seguinte eu retomaria, feliz, minhas aulas e minha liberdade.

 Cheguei cedo à escola procurando pelo Joacir, queria pegá-lo, de novo, antes do Hino Nacional. Não apareceu! Mas minha vingança ainda estava incompleta e não teve nenhum dos seus amigos que eu não tivesse acertado minhas contas. Pelo menos um soco na cara sobrou, para cada um deles. O terror da escola passou a ser eu. Para completar, o Joacir nunca mais apareceu. Fiquei sabendo, tempos depois, que ele foi morar com sua avó em Ribeirão do Sul.

 Eu cresci, aprendendo a me defender. Mais experiente me tornei pacífico, avesso à confusões. Agreguei grandes amigos durante minha caminhada. Aquele fato foi um divisor de águas para meu amadurecimento.

 Há cerca de um ano, em viagem à Santo Expedito, parei em um posto de combustível, perto de Presidente Prudente, para abastecer meu carro. O frentista me pediu as chaves, abriu o tanque e ficou me olhando pelo espelho lateral, colocou a mangueira em posição de abastecimento e entrou em um depósito ao lado do caixa. Esperei alguns minutos e vendo que ele não retornava fui falar com o gerente. Pedi para que ele mandasse alguém para terminar o serviço. Ele, mal educado, grita perguntando para o caixa:

- Tucura, cadê o Joacir?

 O outro respondeu: - Deve ter ido ao banheiro.

 O próprio gerente terminou o atendimento. Paguei a conta e fui até o depósito procurar pelo frentista. Dei de topa com o Joacir, ele mesmo: olhar medroso - cheio de cicatrizes no rosto e no pescoço - magro, vestígios de álcool nas pálpebras e  um semblante sofrido e assustado.

- Por que não abasteceu meu carro? Perguntei.

Sem rodeios ele disse: - Eu tenho medo de você, Marreco!

- Mas quase quarenta anos depois? Questionei. Ele fez um silêncio de cemitério, baixou a cabeça, adentrando os fundos do depósito, desaparecendo por entre os tambores com óleo queimado.


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