O jogo como elo entre o culto e a cultura
Observar
a importância que o currículo da Educação Básica atribui a jogos e
brincadeiras é um bom exercício. Nos Referenciais Curriculares para a
Educação Infantil, por exemplo, ela é máxima. No currículo do Ensino
Médio, quase nula. Ou seja, quando os conteúdos são mais valorizados do
que os processos de aprendizagem, os jogos e os exercícios como
atividades curriculares estão mais ausentes. Quando os processos de
aprendizagem e desenvolvimento são mais valorizados do que os conteúdos,
eles estão mais presentes.
Nossa hipótese é que há uma razão para isso. Nos jogos, a mesma questão, apresentada da mesma maneira, é respondida, isto é, jogada muitas e muitas vezes, até desistirmos do jogo ou compreendermos segredos de sua solução ou de seu enfrentamento. Neles, deve predominar o aspecto lúdico. Nesse sentido, jogo se relaciona com aprendizagem, na perspectiva de sua compreensão. No ensino, sobretudo a partir do 5º ano, é preciso transmitir muitos conteúdos, de preferência em uma ou poucas vezes. E eles têm igual ou maior valor do que os procedimentos necessários para sua aprendizagem, aluno por aluno. Neles, predomina o aspecto lúcido e, desse modo, ensino se relaciona com transmissão, explicação, e aprender significa adquirir, apreender. A superação desse paradoxo implica em valorizar a aprendizagem, termo médio ou comum ao jogar e ao ensinar.
Mas, para aceitar a função mediadora da aprendizagem, temos de modificar nossa compreensão de culto e cultura, reconhecendo a cultura da aprendizagem, tão importante na escola quanto o culto ao professor e às coisas que os alunos devem e só podem aprender por meio deles e dos recursos que utiliza.
Como favorecer essa mudança de posição do lugar do ensino para o lugar da aprendizagem? Sobre isso, os jogos podem cumprir um papel importante.
O jogo como elo entre cultura e culto
Na Educação Básica, é interessante pensar no jogo como elo entre cultura e culto e, por extensão, entre aprendizagem e ensino. Culto, segundo o dicionário, tem duas acepções. Na primeira, prevalecem as significações de (a) religioso, ritual, e (b) instruído, civilizado. Na segunda, tem-se a significação de cultura como "ato, efeito ou modo de cultivar". De acordo com essas significações, podemos considerar culto e cultura como faces de uma mesma moeda. De um lado está a importância simbólica do aspecto religioso ou da instrução e, do outro, a ideia de modo de cultivar. Para os interesses deste artigo, temos, portanto, de um lado, culto como magistério ou ensino fornecido por alguém qualificado para isso (Meirieu, 2005) e cultura como modo de cultivar, ou seja, de aprender aquilo que simbolicamente é transmitido.
Como as crianças e os jovens cultivam o mundo e a si mesmos se não são pressionados pelos mais velhos? Pelo ludens, ou lúdico, responderia Johan Huizinga (1872-1945) (1990), um dos grandes teóricos do jogo. Para ele, é por meio do lúdico que as crianças inventam ou constroem para si mesmas a cultura e assim descobrem ou reconstroem a cultura da sociedade a que pertencem e que deverão assumir como sua. Mas, de sua perspectiva, a cultura só pode ser a da aprendizagem.
Qual ou quais aprendizagens? As das regras, em sua perspectiva social e lógica (Piaget, 1996). Social, porque implicam trocas consentidas entre parceiros, que buscam um objetivo comum, o de ganhar ou superar primeiro um desafio. Por isso, competem entre si e precisam aprender a respeitar um acordo que organize de modo equivalente os conflitos de interesse. Lógica, porque se trata de aprender procedimentos, de aprender a jogar bem. Trata-se também de uma aprendizagem simbólica, pois jogar é simular, imaginar, criar, inventar, sair de si mesmo. Trata-se, por fim, de uma aprendizagem sensorial motora, pois jogar é implicar o corpo, suas sensações e percepções, organizando-as como esquemas de ações que se querem atentas, disciplinadas e bem-sucedidas em relação àquilo que se busca alcançar, motivado apenas pelo prazer de sua função (Piaget, 1964).
Como crianças e jovens precisam aprender a cultivar o mundo e a si mesmos? Preferencialmente pelo lúcido, responderiam os educadores e os responsáveis pelas políticas públicas - ou seja, preferencialmente pelas coisas racionais e futurosas da escola, se considerarmos apenas o foco de nossa reflexão (Meirieu, 2005). Preferencialmente, eles responderiam também pelo rito da aula, pela importância que hoje atribuímos ao conhecimento e ao método científicos, pela cultura da escola, como instituição responsável, hoje, pela Educação Básica de todos (Castorina e cols., 2010). Preferencialmente, completariam, pelo valor do professor e suas instruções, como responsável ou mediador daquilo que ninguém pode ou quer hoje ficar excluído de saber e praticar.
Ensino/aprendizagem e lúcido/lúdico
Voltando às significações de culto, podemos estabelecer, talvez, a seguinte correspondência: os profissionais da escola estão para o lúcido como as crianças e os jovens da escola estão para o lúdico. É só uma troca de letras, mas fundamental. Na primeira, tem-se o valor do ensino. Na segunda, o da aprendizagem. Será por isso que, quanto mais se progride na vida escolar, mais se dá ênfase ao lúcido, ficando o lúdico permitido ou tolerado apenas nos intervalos entre uma e outra lucidez? Como pensarmos essas dimensões de modo interdependente? (Piaget, 1996).
Se queremos uma escola para todos, ensino e aprendizagem, lúcido e lúdico deverão compor um quaterno, no centro do qual culto e cultura significarão, em seu conjunto, a mesma coisa. Enquanto isso não ocorre, temos de suportar a desigualdade ou o paradoxo: cultura todos temos, cultos só alguns podemos ser. Expressando de outro modo, enquanto a Educação Básica for pensada prioritariamente em termos da escola que só uma elite pode frequentar e dela tirar o melhor proveito, talvez tenhamos de lidar com esta contradição: um todo - a Educação escolar - só se conhece pela parte (a do culto) que mais valoriza (Macedo, 2010b).
Lembremos que, em sua visão tradicional, a escola valoriza só a perspectiva do culto. Cultura, sobretudo em seu âmbito popular, tem pouco espaço, se considerarmos o tempo mais precioso para ela (a sala de aula). Matemática e jogo são dois exemplos dessa questão. A Matemática que a escola cultiva é a da linguagem ou disciplina científica, com algoritmos, teoremas e equações. A Matemática implícita no jogo não tem reconhecimento. O jogo, quando permitido, ocorre nas aulas de Educação Física, como prática esportiva, no recreio ou nos intervalos das aulas. Sobretudo, do 5º ano do Ensino Fundamental ao 3º ano do Ensino Médio, ele ainda não tem um lugar importante na sala de aula nem é reconhecido na perspectiva do culto. Quando muito é estratégia pedagógica para alguns conteúdos e motivação psicológica para favorecer a retomada do estudo ou para o descanso.
Ainda é um caso isolado o reconhecimento formal de Física, Sociologia, Antropologia, Matemática, lógica, Filosofia, leitura e escrita presentes no jogo. Sem isso, o jogo na escola continuará sendo uma expressão tolerável, sem alcançar nessa instituição a dimensão culta, simbólica, civilizadora que sempre foi seu apanágio no âmbito da cultura (Huizinga, 1990).
Agora que a escola, como Educação Básica, se tornou uma necessidade de todos e uma exigência do Estado, temos de rever, diferenciando e integrando as relações entre culto e cultura, entre lúcido e lúdico. As crianças e os jovens não compõem mais só a elite intelectual, moral ou religiosa capaz de se subordinar e vencer as exigências da escola. Culto e cultura têm de se reencontrar em suas duas acepções. A relação independente ou subordinada praticada na escola tradicional precisa evoluir para uma relação interdependente. Ou seja, o aluno-cultura e o professor-culto compõem dois elos de uma mesma cadeia. De um lado, o estudante deve construir ou reconstruir conhecimentos escolares. De outro, os docentes são responsáveis por sua transmissão nos termos em que se espera e necessita. Que tal, para enfatizar os processos de aprendizagem e desenvolvimento, inverter o jogo: alunos-cultos e professores-cultura?
O jogo como elemento primordial da cultura pode e deve, agora, participar das coisas da escola e encontrar a dimensão culta que sempre teve. Tomar consciência, observar, abstrair e coordenar pontos de vista e formalizar procedimentos, entre outros aspectos importantes no contexto do jogo, são igualmente importantes no contexto escolar (Piaget, 1996). A disciplina moral (respeito à regra do jogo, ao oponente, ao resultado da partida) e a disciplina intelectual (observar, comparar, antecipar, inferir, planejar, decidir) dos jogos são reconhecidas como valiosas para o ensino da Matemática e outras linguagens científicas. Daí que, hoje, se reconhece que é bom trabalhar com jogos no contexto do ensino de conteúdos.
Jogos como recursos de desenvolvimento e aprendizagem
A seguir, apresentamos nove questões que justificam essa mudança de atitude em favor do uso de jogos como recurso de observação e promoção de processos de desenvolvimento e aprendizagem escolar.
1. A escola visa ensinar o lúcido. Crianças e jovens o alcançam melhor pelo lúdico. Como ensinar o que é lúcido e aprender pelo lúdico? (Macedo, Petty e Passos, 2011)
2. Jogos de regras requerem o desenvolvimento de procedimentos para jogar bem. Como criar situações em que se possa aprender, sem estar determinado pelos conteúdos que se aprende, a observar, relacionar, comparar, coordenar, argumentar, consentir em objetivos e regras, conferir, antecipar, calcular, inferir e reconhecer as consequências da própria ação (ganhar ou perder)? (Piaget e cols., 1995)
3. Jogos e seus contextos são simbólicos, imaginários, simulações combinadas ou consentidas que criam desafios e pedem boa argumentação (Macedo, 2011). Mas, em si mesmos, nada significam - valem pelo que permitem circular. Como criar na escola um contexto de aprendizagem, ao menos em certos momentos, desgrudado de nossos interesses de ensino de conteúdos? (Macedo, 2009)
4. Nos jogos, aprende-se o valor de pensar bem antes de agir, mas, se deu errado, é possível corrigir ou melhorar porque a partida seguinte se apresenta como uma chance de recuperação (Macedo, Petty e Passos, 2000). Como aprender com os erros e valorizar o processo de investigação?
5. Nos jogos, o contexto é de faz de conta ou de simulação, mas as ações ou operações realizadas valem, têm implicações. Como aprender a diferenciar e integrar os conteúdos das formas que os estruturam? (Piaget e cols., 1995.)
6. Nos jogos, as crianças aprendem que prazer, alegria e desafio combinam com o valor do conhecimento. (Meirieu, 1998). Como recuperar na escola o prazer funcional da discussão, do aprender como um bem em si mesmo? (Macedo, 2010a.)
7. Os jogos são, talvez, uma das melhores formas de demonstrar empiricamente, em situações e problemas que as crianças entendem, o valor da Matemática como disciplina de um pensar com razão, que argumenta, calcula, faz inferências, que age em um contexto de regras lógicas (exigem coerência) e regras sociais (exigem reconhecimento do outro com quem se joga, pedem a disciplina do estar junto e compartilhar os mesmos elementos sem os quais não há jogo). Como valorizar as dimensões lógica e social como partes de um mesmo todo? (Piaget, 1996)
8. Nos jogos, competição como produto e motivação (ganhar ou perder, aceitar uma situação com limites de tempo e espaço) e cooperação como processo se complementam. Como diferenciar e integrar processo (de pensar) e produto (conhecimento)?
9. As estruturas cognitivas do jogo-exercício (prazer funcional, repetição com sentido), do símbolo (faz de conta, simulação, imaginação) e da regra (desenvolver procedimentos que otimizam um objetivo a ser alcançado em um contexto de restrições) - são válidas e generalizáveis para todas as outras situações de vida e construção de conhecimento. Como aprender a reconhecer o valor da vida segundo o modo como a "jogamos"? (Macedo e Machado, 2006.)
Nossa hipótese é que há uma razão para isso. Nos jogos, a mesma questão, apresentada da mesma maneira, é respondida, isto é, jogada muitas e muitas vezes, até desistirmos do jogo ou compreendermos segredos de sua solução ou de seu enfrentamento. Neles, deve predominar o aspecto lúdico. Nesse sentido, jogo se relaciona com aprendizagem, na perspectiva de sua compreensão. No ensino, sobretudo a partir do 5º ano, é preciso transmitir muitos conteúdos, de preferência em uma ou poucas vezes. E eles têm igual ou maior valor do que os procedimentos necessários para sua aprendizagem, aluno por aluno. Neles, predomina o aspecto lúcido e, desse modo, ensino se relaciona com transmissão, explicação, e aprender significa adquirir, apreender. A superação desse paradoxo implica em valorizar a aprendizagem, termo médio ou comum ao jogar e ao ensinar.
Mas, para aceitar a função mediadora da aprendizagem, temos de modificar nossa compreensão de culto e cultura, reconhecendo a cultura da aprendizagem, tão importante na escola quanto o culto ao professor e às coisas que os alunos devem e só podem aprender por meio deles e dos recursos que utiliza.
Como favorecer essa mudança de posição do lugar do ensino para o lugar da aprendizagem? Sobre isso, os jogos podem cumprir um papel importante.
O jogo como elo entre cultura e culto
Na Educação Básica, é interessante pensar no jogo como elo entre cultura e culto e, por extensão, entre aprendizagem e ensino. Culto, segundo o dicionário, tem duas acepções. Na primeira, prevalecem as significações de (a) religioso, ritual, e (b) instruído, civilizado. Na segunda, tem-se a significação de cultura como "ato, efeito ou modo de cultivar". De acordo com essas significações, podemos considerar culto e cultura como faces de uma mesma moeda. De um lado está a importância simbólica do aspecto religioso ou da instrução e, do outro, a ideia de modo de cultivar. Para os interesses deste artigo, temos, portanto, de um lado, culto como magistério ou ensino fornecido por alguém qualificado para isso (Meirieu, 2005) e cultura como modo de cultivar, ou seja, de aprender aquilo que simbolicamente é transmitido.
Como as crianças e os jovens cultivam o mundo e a si mesmos se não são pressionados pelos mais velhos? Pelo ludens, ou lúdico, responderia Johan Huizinga (1872-1945) (1990), um dos grandes teóricos do jogo. Para ele, é por meio do lúdico que as crianças inventam ou constroem para si mesmas a cultura e assim descobrem ou reconstroem a cultura da sociedade a que pertencem e que deverão assumir como sua. Mas, de sua perspectiva, a cultura só pode ser a da aprendizagem.
Qual ou quais aprendizagens? As das regras, em sua perspectiva social e lógica (Piaget, 1996). Social, porque implicam trocas consentidas entre parceiros, que buscam um objetivo comum, o de ganhar ou superar primeiro um desafio. Por isso, competem entre si e precisam aprender a respeitar um acordo que organize de modo equivalente os conflitos de interesse. Lógica, porque se trata de aprender procedimentos, de aprender a jogar bem. Trata-se também de uma aprendizagem simbólica, pois jogar é simular, imaginar, criar, inventar, sair de si mesmo. Trata-se, por fim, de uma aprendizagem sensorial motora, pois jogar é implicar o corpo, suas sensações e percepções, organizando-as como esquemas de ações que se querem atentas, disciplinadas e bem-sucedidas em relação àquilo que se busca alcançar, motivado apenas pelo prazer de sua função (Piaget, 1964).
Como crianças e jovens precisam aprender a cultivar o mundo e a si mesmos? Preferencialmente pelo lúcido, responderiam os educadores e os responsáveis pelas políticas públicas - ou seja, preferencialmente pelas coisas racionais e futurosas da escola, se considerarmos apenas o foco de nossa reflexão (Meirieu, 2005). Preferencialmente, eles responderiam também pelo rito da aula, pela importância que hoje atribuímos ao conhecimento e ao método científicos, pela cultura da escola, como instituição responsável, hoje, pela Educação Básica de todos (Castorina e cols., 2010). Preferencialmente, completariam, pelo valor do professor e suas instruções, como responsável ou mediador daquilo que ninguém pode ou quer hoje ficar excluído de saber e praticar.
Ensino/aprendizagem e lúcido/lúdico
Voltando às significações de culto, podemos estabelecer, talvez, a seguinte correspondência: os profissionais da escola estão para o lúcido como as crianças e os jovens da escola estão para o lúdico. É só uma troca de letras, mas fundamental. Na primeira, tem-se o valor do ensino. Na segunda, o da aprendizagem. Será por isso que, quanto mais se progride na vida escolar, mais se dá ênfase ao lúcido, ficando o lúdico permitido ou tolerado apenas nos intervalos entre uma e outra lucidez? Como pensarmos essas dimensões de modo interdependente? (Piaget, 1996).
Se queremos uma escola para todos, ensino e aprendizagem, lúcido e lúdico deverão compor um quaterno, no centro do qual culto e cultura significarão, em seu conjunto, a mesma coisa. Enquanto isso não ocorre, temos de suportar a desigualdade ou o paradoxo: cultura todos temos, cultos só alguns podemos ser. Expressando de outro modo, enquanto a Educação Básica for pensada prioritariamente em termos da escola que só uma elite pode frequentar e dela tirar o melhor proveito, talvez tenhamos de lidar com esta contradição: um todo - a Educação escolar - só se conhece pela parte (a do culto) que mais valoriza (Macedo, 2010b).
Lembremos que, em sua visão tradicional, a escola valoriza só a perspectiva do culto. Cultura, sobretudo em seu âmbito popular, tem pouco espaço, se considerarmos o tempo mais precioso para ela (a sala de aula). Matemática e jogo são dois exemplos dessa questão. A Matemática que a escola cultiva é a da linguagem ou disciplina científica, com algoritmos, teoremas e equações. A Matemática implícita no jogo não tem reconhecimento. O jogo, quando permitido, ocorre nas aulas de Educação Física, como prática esportiva, no recreio ou nos intervalos das aulas. Sobretudo, do 5º ano do Ensino Fundamental ao 3º ano do Ensino Médio, ele ainda não tem um lugar importante na sala de aula nem é reconhecido na perspectiva do culto. Quando muito é estratégia pedagógica para alguns conteúdos e motivação psicológica para favorecer a retomada do estudo ou para o descanso.
Ainda é um caso isolado o reconhecimento formal de Física, Sociologia, Antropologia, Matemática, lógica, Filosofia, leitura e escrita presentes no jogo. Sem isso, o jogo na escola continuará sendo uma expressão tolerável, sem alcançar nessa instituição a dimensão culta, simbólica, civilizadora que sempre foi seu apanágio no âmbito da cultura (Huizinga, 1990).
Agora que a escola, como Educação Básica, se tornou uma necessidade de todos e uma exigência do Estado, temos de rever, diferenciando e integrando as relações entre culto e cultura, entre lúcido e lúdico. As crianças e os jovens não compõem mais só a elite intelectual, moral ou religiosa capaz de se subordinar e vencer as exigências da escola. Culto e cultura têm de se reencontrar em suas duas acepções. A relação independente ou subordinada praticada na escola tradicional precisa evoluir para uma relação interdependente. Ou seja, o aluno-cultura e o professor-culto compõem dois elos de uma mesma cadeia. De um lado, o estudante deve construir ou reconstruir conhecimentos escolares. De outro, os docentes são responsáveis por sua transmissão nos termos em que se espera e necessita. Que tal, para enfatizar os processos de aprendizagem e desenvolvimento, inverter o jogo: alunos-cultos e professores-cultura?
O jogo como elemento primordial da cultura pode e deve, agora, participar das coisas da escola e encontrar a dimensão culta que sempre teve. Tomar consciência, observar, abstrair e coordenar pontos de vista e formalizar procedimentos, entre outros aspectos importantes no contexto do jogo, são igualmente importantes no contexto escolar (Piaget, 1996). A disciplina moral (respeito à regra do jogo, ao oponente, ao resultado da partida) e a disciplina intelectual (observar, comparar, antecipar, inferir, planejar, decidir) dos jogos são reconhecidas como valiosas para o ensino da Matemática e outras linguagens científicas. Daí que, hoje, se reconhece que é bom trabalhar com jogos no contexto do ensino de conteúdos.
Jogos como recursos de desenvolvimento e aprendizagem
A seguir, apresentamos nove questões que justificam essa mudança de atitude em favor do uso de jogos como recurso de observação e promoção de processos de desenvolvimento e aprendizagem escolar.
1. A escola visa ensinar o lúcido. Crianças e jovens o alcançam melhor pelo lúdico. Como ensinar o que é lúcido e aprender pelo lúdico? (Macedo, Petty e Passos, 2011)
2. Jogos de regras requerem o desenvolvimento de procedimentos para jogar bem. Como criar situações em que se possa aprender, sem estar determinado pelos conteúdos que se aprende, a observar, relacionar, comparar, coordenar, argumentar, consentir em objetivos e regras, conferir, antecipar, calcular, inferir e reconhecer as consequências da própria ação (ganhar ou perder)? (Piaget e cols., 1995)
3. Jogos e seus contextos são simbólicos, imaginários, simulações combinadas ou consentidas que criam desafios e pedem boa argumentação (Macedo, 2011). Mas, em si mesmos, nada significam - valem pelo que permitem circular. Como criar na escola um contexto de aprendizagem, ao menos em certos momentos, desgrudado de nossos interesses de ensino de conteúdos? (Macedo, 2009)
4. Nos jogos, aprende-se o valor de pensar bem antes de agir, mas, se deu errado, é possível corrigir ou melhorar porque a partida seguinte se apresenta como uma chance de recuperação (Macedo, Petty e Passos, 2000). Como aprender com os erros e valorizar o processo de investigação?
5. Nos jogos, o contexto é de faz de conta ou de simulação, mas as ações ou operações realizadas valem, têm implicações. Como aprender a diferenciar e integrar os conteúdos das formas que os estruturam? (Piaget e cols., 1995.)
6. Nos jogos, as crianças aprendem que prazer, alegria e desafio combinam com o valor do conhecimento. (Meirieu, 1998). Como recuperar na escola o prazer funcional da discussão, do aprender como um bem em si mesmo? (Macedo, 2010a.)
7. Os jogos são, talvez, uma das melhores formas de demonstrar empiricamente, em situações e problemas que as crianças entendem, o valor da Matemática como disciplina de um pensar com razão, que argumenta, calcula, faz inferências, que age em um contexto de regras lógicas (exigem coerência) e regras sociais (exigem reconhecimento do outro com quem se joga, pedem a disciplina do estar junto e compartilhar os mesmos elementos sem os quais não há jogo). Como valorizar as dimensões lógica e social como partes de um mesmo todo? (Piaget, 1996)
8. Nos jogos, competição como produto e motivação (ganhar ou perder, aceitar uma situação com limites de tempo e espaço) e cooperação como processo se complementam. Como diferenciar e integrar processo (de pensar) e produto (conhecimento)?
9. As estruturas cognitivas do jogo-exercício (prazer funcional, repetição com sentido), do símbolo (faz de conta, simulação, imaginação) e da regra (desenvolver procedimentos que otimizam um objetivo a ser alcançado em um contexto de restrições) - são válidas e generalizáveis para todas as outras situações de vida e construção de conhecimento. Como aprender a reconhecer o valor da vida segundo o modo como a "jogamos"? (Macedo e Machado, 2006.)
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