É proibido fumar
Gustavo Alvaro
Agora é lei: não pode fumar em local fechado, não pode fumar em local aberto... não pode fumar.
É
proibido fumar, e acho até um pouco bom. Particularmente, não sou
fumante, mas acho que é complicado jogar a culpa da fumaça toda no
tabagista. Ora, de que adianta a pessoa ter o direito de comprar seu
cigarro em qualquer lugar, se ela não pode fumar em qualquer lugar?
A
fumaça incomoda, faz mal; mas também incomoda o cheiro de álcool e os
acidentes provocados por bêbados –que saem dos mesmos bares, onde não se
pode mais fumar– e causam pior estrago. Então por que não se proíbe o
consumo de álcool, em bares e restaurantes? A mim, me incomoda mais um
bêbado do que um fumante. Aliás, os dois incomodam tanto quanto o
barulho dos carros na cidade do Rio. Por que não se proíbe o tráfego de
carros barulhentos nos centros das cidades? E a fumaça dos carros? Por
que não se proíbe? Por que não se põe uma centena de propagandas
negativas, tarjas pretas dizendo que a fumaça dos carros contém mais de
4,700 substâncias tóxicas, e que não há níveis seguros para o consumo?
Parece impossível. Afinal, se tantas coisas incomodam, fazem mal e
tralalá, por que não se proibir tudo?
Agora
imaginem nossa sociedade modelo: é proibido fumar, beber, transgênicos,
conservas, frituras, comunismo, drogas (elas já são proibidas, mas
ninguém se importa), música alta, carros barulhentos, carros fedorentos,
carros calorentos... É proibido estacionar, caso ainda haja algum carro
na rua que não tenha sido multado, apreendido, roubado ou desmanchado.
Não se pode espirrar ou tossir, evitando a contaminação de gripes e
resfriados (o infrator deverá pagar uma multa de uns trocentos reais),
extinguindo assim os surtos da doença. Aliás, só pra constar: sexo é
proibido. Só para procriação, caso haja congestionamento nos sistemas de
fertilização artificial. Isso tudo é bom pra você?
É
importante deixar bem claro que não sou a favor do fumo, e sim da
liberdade. E não adianta aumentar o preço do tabaco, encher de impostos,
propagandas negras e campanhas anti-fumo. O tabagista sabe dos
malefícios do cigarro, e isso é problema dele. Agora, o doente, esse
sim, é problema do governo. É para isso que pagamos impostos, mas nem
hospitais podemos ter. Pagamos tanto imposto e não vemos nada aplicado
em coisas básicas, como saúde (só pra não citar educação), e só vemos
proibições, altos preços e aquele cerceamento sinistro que nos acomete
desde a época da ditadura. E vai seguindo. Quem sabe, daqui há alguns
anos, falar não seja proibido?
Aviso: fumar causa multa e apreensão do cigarro.
Texto 02
Morte ao crack
Adalberto dos Santos
Peço
desculpas aos que me leem neste site. Não pude escrever minha
croniqueta no último sábado. Chegou a noite da sexta e não pude. Nem
durante a madrugada do sábado consegui preparar o escrito. Não por falta
de assunto, claro. Esse ainda havia. Literalmente o mundo está
fervendo. E demais. Literariamente também. Sempre há assunto. Os que
escrevem sabem que não falta o que dizer quando se quer escrever. No
caso da crônica, é um pouco diferente, porque, como já se disse por aí, é
um muito difícil. Toda vez o cara tem que comer o diabo que amassou o
pão. E sem assado ou tempero. Sofre a dor do parto com a caneta entre os
dedos e às vezes não sai nem um milionésimo de palavra.
Não
faltou mesmo que dizer, juro. Negócio é que às vezes se tem o que
dizer, mas não se tem a alma suficientemente capaz de deixar a voz
tagarela. Como se sabe, nem só a língua fala; a alma também. Na verdade,
fala a alma pela língua. Mas, quando aquela sofre de algo, fica-se
mudo, infeliz, incapaz. Foi o que me aconteceu no último fim de semana.
Fiquei abatido com coisas que vi e não tive palavras para escrever.
Minha aflição era muita.
Estava
ainda na velha Paraíba colhendo lembranças de todos os tempos com
amigos e não-amigos. Mas ali, já sombrio por ter encontrado minha cidade
tão diferente (atolada na lama da hipocrisia em todos os sentidos),
como fiz questão de lembrar a vocês, fiquei sabendo de um mal
considerável que também a atinge. O mal do crack que já vitima jovens de
todas as idades naquele rincão de Nordeste.
Tive náuseas de não dormir aquele fim de semana quando soube por fontes locais das séries de pequenos furtos realizados pelos usuários da droga em casas de todas as classes da cidade, em especial das pequenas residências de pessoas que, para não morrer à sorte do frio da noite, têm de seu apenas o teto. Nesses lares pequenos e apertados, que só cabem as redes onde os pais sertanejos descansam a penca de herdeiros da escassez de quase tudo, estão entrando os larápios, ou, como se diz na gíria dos locutores de noticiários policiais, os donos do alheio. O mais assustador é que já não furtam por precisão, como antigamente. Nem é para guardar o furto ou trocá-lo em objetos que desejam por inveja ou carência. Eles o fazem para transformar a obra do delito em dinheiro que enriquece fácil essa nova elite de pequenos milionários suburbanos, os traficantes do já conhecido mercado do crack brasileiro.
Tive náuseas de não dormir aquele fim de semana quando soube por fontes locais das séries de pequenos furtos realizados pelos usuários da droga em casas de todas as classes da cidade, em especial das pequenas residências de pessoas que, para não morrer à sorte do frio da noite, têm de seu apenas o teto. Nesses lares pequenos e apertados, que só cabem as redes onde os pais sertanejos descansam a penca de herdeiros da escassez de quase tudo, estão entrando os larápios, ou, como se diz na gíria dos locutores de noticiários policiais, os donos do alheio. O mais assustador é que já não furtam por precisão, como antigamente. Nem é para guardar o furto ou trocá-lo em objetos que desejam por inveja ou carência. Eles o fazem para transformar a obra do delito em dinheiro que enriquece fácil essa nova elite de pequenos milionários suburbanos, os traficantes do já conhecido mercado do crack brasileiro.
Os
usuários, uns pobres, sequer se alimentam essas criaturas sem cor ou
cara de criaturas. São os escravos da “pedra”, a mistura insípida que o
jornal me diz ser o pó da cocaína e bicarbonato de sódio. Tristes
crianças de menos de doze anos, outros são ex-vitaminados atletas,
homens e mulheres que eu conheci na infância e que hoje a droga está
afastando da família, da sociedade e deles próprios.
”Noiados”, como são chamados, em razão da possessão da droga, roubam tudo o que podem. À noite, entram nas casas por cima do telhado, pulam os muros, atravessam paredes como vampiros. Quando menos se espera, já têm levado pequenos objetos como vassouras, baldes, peneiras, bicicletas, restos de sabão, roupas no varal. Sutis feito um felino com fome, fazem a xepa para a volúpia do vício. Me disseram que um deles esperou um comerciante plantar a árvore no fim da tarde e mal os últimos moradores fecharam as portas depois da novela, cavou ao redor e levou consigo a muda. Moeda de troca. Ninguém ouviu o pisar dos pés ou o ofegar do pulmão viciado. Parece que cavou o chão com as unhas. Pela manhã bem cedo viram as pistas em suas mãos. Sujas de terra. Semelhante ao cão que escava um osso onde enterraram carne com veneno. Perguntado se havia levado a plantinha, não conseguiu responder. Não tinha forças. Estava sob efeito da segunda pedra das últimas duas horas.
”Noiados”, como são chamados, em razão da possessão da droga, roubam tudo o que podem. À noite, entram nas casas por cima do telhado, pulam os muros, atravessam paredes como vampiros. Quando menos se espera, já têm levado pequenos objetos como vassouras, baldes, peneiras, bicicletas, restos de sabão, roupas no varal. Sutis feito um felino com fome, fazem a xepa para a volúpia do vício. Me disseram que um deles esperou um comerciante plantar a árvore no fim da tarde e mal os últimos moradores fecharam as portas depois da novela, cavou ao redor e levou consigo a muda. Moeda de troca. Ninguém ouviu o pisar dos pés ou o ofegar do pulmão viciado. Parece que cavou o chão com as unhas. Pela manhã bem cedo viram as pistas em suas mãos. Sujas de terra. Semelhante ao cão que escava um osso onde enterraram carne com veneno. Perguntado se havia levado a plantinha, não conseguiu responder. Não tinha forças. Estava sob efeito da segunda pedra das últimas duas horas.
Conheço
o sujeito. Por sorte, enquanto estive na cidade, não consegui
encontrá-lo. Acredito que teria perdido o restante da viagem. É triste
ver gente tão jovem enganada por essas ilusões miseráveis.
É ainda mais triste testemunhar que a lista aumenta a cada minuto.
Drogas: ilusões que só desgastam, deprimem, matam sem piedade. Não morre
o traficante, que se dá bem com a desgraça dos outros. Morte ao crack,
então, esse abismo que tem engolido o planeta de uma ponta a outra, que
tem aprisionado o corpo e a alma de infelizes sem casa e sem nome.
São tantos, meu Deus, que dá pena. Sofro porque quando a gente os vê, sabe que a vida deles é o preço da pedra; na matemática real, uns míseros cinco reais. Sem eles, que usa não a tem. Acaso, eles a dão de graça? Que nada. Apenas matam e enganam se não os pagam; no mínimo, eles lhes tiram até o que não têm. Em pouco tempo, não mais o orgulho de se sentir decente. Depois, nem as pequenas árvores, lindas e maravilhosas, como sempre foram, podem crescer tranquilas em direção ao céu. Crianças de menos de doze anos não podem crescer; sequer sonhar com a esperança de um céu. Onde? Quando?
São tantos, meu Deus, que dá pena. Sofro porque quando a gente os vê, sabe que a vida deles é o preço da pedra; na matemática real, uns míseros cinco reais. Sem eles, que usa não a tem. Acaso, eles a dão de graça? Que nada. Apenas matam e enganam se não os pagam; no mínimo, eles lhes tiram até o que não têm. Em pouco tempo, não mais o orgulho de se sentir decente. Depois, nem as pequenas árvores, lindas e maravilhosas, como sempre foram, podem crescer tranquilas em direção ao céu. Crianças de menos de doze anos não podem crescer; sequer sonhar com a esperança de um céu. Onde? Quando?
Texto 03
O apagão poderá nos trazer alguma luz
Arnaldo Jabor
Nossa ilusão de Primeiro Mundo falsificado caiu por terra.
Não
tivemos guerra, não tivemos revolução, mas teremos o apagão. O apagão
vai ser uma porrada na nossa auto-estima, mas terá suas vantagens.
Com o apagão, ficaremos mais humildes, como os humildes.
A
grande onda narcisista da democracia liberal ficará mais cabreira, as
gargalhadas das colunas sociais ficarão menos luminosas, nossas
dentaduras menos brancas, nossos flashes menos gloriosos. Baixará o
astral das estrelas globais, dos grandes comedores, as bundas ficarão
mais tímidas, os peitos de silicone menos arrebitados, ficaremos menos
arrogantes dentro da escuridão que se abaterá em nossas vidas de classe
média. Há algo de castigo de Deus nesta porra toda, pois ficaremos mais
parecidos com as periferias, para quem sempre houve o apagão de vidas e
sonhos, haverá algo de becos escuros, de becos sem saída, de favelas
tristes, haverá um baque em nosso egoismo, nossas peruas e nossos
cafajestes terão de maneirar um pouco. A euforia de Primeiro Mundo
falsificado cairá por terra e dará lugar a uma belíssima e genuína
infelicidade.
O
Brasil se lembrará do passado agropastoril que teve e que,
escondidamente, ainda tem; teremos saudades do matão, do luar do sertão,
da Rádio Nacional, do acendedor de lampiões da rua, dos candeeiros, das
lâmpadas de carbureto dos carrinhos de pipoca, lembraremos das tristes
noites dos anos 40, como das noites dos blackouts da Segunda Guerra,
mesmo sem os submarinos, sem navios alemães, apenas sinistros
assaltantes nas esquinas apagadas.
O
apagão nos lembrará dos velhos carnavais: "tomara que chova três dias
sem parar." Ou: "Rio, cidade que nos seduz, de dia falta água, de noite
falta luz!" Lembraremos dos velhos discos de 78 rpm, dos cantores com
som precário, das TVs preto e branco, de um Brasil mais micha, mais
pobre, cambaio, troncho, mas bem mais brasileiro em seu caminho da roça,
que o Golpe de 64 interrompeu, que esta mania prostituída de Primeiro
Mundo matou a tapa.
Há
algo de maldição nisso tudo, castigo pela destruição de Sete Quedas, o
preço a pagar pelos demônios ecológicos de Itaipu, de Tucuruí, do tal
"Brasil potência", das grandes gorjetas, das represas, dos 50 bilhões de
dólares de Angra 1 e 2, dos bilhões roubados nas grandes hidrelétricas
arcaicas já na época em que se sabia da melhor utilidade das pequenas
usinas e de outras fontes de energia. Lembraremos de Geisel, de Médici,
dos milicos que nos marcam a vida até hoje, nos entregando uma
democracia de caixa quebrada, nos lembraremos também dos canalhas que
pilharam o Tesouro, com sua fome de 20 anos, dos corruptos, das
instituições vagabundas que nos ajudaram a falir, nos obrigando a um
ajuste fiscal desumano, nos obrigando a uma governança miserável, sem
desenvolvimento, sem projeto, limitada a arrumar as contas da falência.
O
apagão nos mostra que somos subdesenvolvidos sim, que toda esta
superestrutura de delírios modernizantes está em cima de pés de barro. O
apagão é um upgrade nas periferias, nos "bondes do Tigrão", no mundo
funk, nos lembrando da escuridão física e mental em que eles vivem, do
lado de fora de nossas cercas e avenidas iluminadas. O apagão nos fará
mais pensativos, mais metafísicos, mais conscientes de nossa pequenez no
mundo. Não temos terremotos e vulcão, mas temos apagão. Seremos mais
poéticos, olharemos as noites estreladas e pensaremos: "a solidão dos
espaços infinitos nos apavora", como disse Pascal ou ainda, se mais
líricos, recitaremos Victor Hugo: "a hidra-universo torce seu corpo
cravejado de estrelas..."
O
apagão nos fará pensar em Deus; não este "deus" das classes médias, da
missa de domingo, sempre pedindo amor, saúde e dinheiro, nem do "deus"
dos universais dos 10% para os bispos da TV, mas o Deus-natureza que tem
uma vida própria, um ritmo seu, o Deus-universo que despreza nosso
progresso dependente. O apagão nos dará medo de um grande flagelo que
poderá nos fazer migrar das grandes cidades, deixando para trás as
avenidas paulistas secas e mortas. O apagão nos fará entender a vida dos
flagelados do Nordeste, que sempre olharam o nosso lindo céu de anil
como uma ameaça. O apagão nos fará contemplar o azul sem nuvens, pois
aprendemos o que a natureza é quando não obedecida e respeitada.
O
apagão nos fará mais parcimoniosos, mais respeitosos, mais públicos, e
acreditaremos menos nos arroubos de auto-suficiência. O apagão vai
dividir nossas vidas, de novo, em dia e noite. As noites e os dias serão
nítidos, sem esta orgia de luzes que a modernidade celebra para nos
fascinar como diamantes sobre o pano negro de sujeira, que nos fazem
esquecer as cidades que, de perto, são feias e injustas. Vai diminuir a
féerie do capitalismo enganador.
Vamos
dormir melhor com o apagão, talvez amemos mais a verdade dos dias e
menos a mentira das noites . Acabará a ilusão de clubbers e playboys que
terão medo dos "manos" em cruzamentos negros e talvez o amor fique mais
recolhido, mais sussurado, mais trêmulo e desamparado. Talvez o sexo se
revalorize como prazer calmo e doce, talvez fique menos rebolante e
voraz. Talvez aumente a população, com a diminuição das diversões
eletrônicas noturnas.
O
apagão nos fará mais inseguros na rua mas, talvez, mais amigos nos
lares e bares. Estaremos de volta a nossa Idade da Pedra, aos fundos de
caverna onde nós, macacos, nos protegíamos, mais solidários, com pavor
das grandes feras.
Finalmente,
o apagão nos fará mais perplexos, pois descobrimos que o Brasil é mais
absurdo que pensávamos, pois nunca entenderemos como, com três agências
cuidando da energia, o governo foi pego de surpresa por essas trevas tão
longamente anunciadas. Só nos resta o consolo de saber que, no fim, o
apagão vai nos trazer alguma luz sobre quem somos.
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