terça-feira, 19 de maio de 2015




Conheci que Madalena era boa em demasia, mas não conheci tudo de uma vez. Ela se revelou pouco a pouco, e nunca se revelou inteiramente. A culpa foi minha, ou antes, a culpa foi desta vida agreste, que me deu uma alma agreste.
E, falando assim, compreendo que perco o tempo. Com efeito, se me escapa o retrato moral de minha mulher, para que serve esta narrativa? Para nada, mas sou forçado a escrever.
Quando os grilos cantam, sento-me aqui à mesa da sala de jantar, bebo café, acendo o cachimbo. Às vezes as idéias não vêm, ou vêm muito numerosas e a folha permanece meio escrita, como estava na véspera. Releio algumas linhas, que me desagradam. Não vale a pena tentar corrigi-las. Afasto o papel.
Emoções indefiníveis me agitam inquietação terrível, desejo doido de voltar, tagarelar novamente com Madalena, como fazíamos todos os dias, a esta hora. Saudade? Não, não é isto: é desespero, raiva, um peso enorme no coração.
Procuro recordar o que dizíamos. Impossível. As minhas palavras eram apenas palavras, reprodução imperfeita de fatos exteriores, e os dela tinham alguma coisa que não consigo exprimir. Para senti-las melhor, eu apagava as luzes, deixava que a sombra nos envolvesse até ficarmos dois vultos indistintos na escuridão.
Lá fora os sapos arengavam, o vento gemia, as árvores do pomar tornavam-se massas negras.
- Casimiro!
Casimiro Lopes estava no jardim, acocorado ao pé da janela, vigiando.
- Casimiro!
A figura de Casimiro Lopes aparece à janela, os sapos gritam, o vento sacode as árvores, apenas visíveis na treva. Maria das Dores entra e vai abrir o comutador. Detenho-a: não quero luz.
O tique-taque do relógio diminui, os grilos começam a cantar. E Madalena surge no lado de lá da mesa. Digo baixinho:
- Madalena!
A voz dela me chega aos ouvidos. Não, não é aos ouvidos. Também já não a vejo com os olhos .
Estou encostado à mesa, as mãos cruzadas. Os objetos fundiram-se, e não enxergo se quer a toalha branca.
- Madalena...
A voz de Madalena continua a acariciar-me. Que diz ela? Pede-me naturalmente que mande algum dinheiro a mestre Caetano. Isto me irrita, mas a irritação é diferente das outras, é uma irritação antiga, que me deixa inteiramente calmo. Loucura estar uma pessoa ao mesmo tempo zangada e tranqüila. Mas estou assim. Irritado contra quem? Contra mestre Caetano. Não obstante ele ter morrido, acho bom que vá trabalhar. Mandrião!
A toalha reaparece, mais não sei se é esta toalha sobre que tenho as mãos cruzadas ou a que estava aqui há cinco anos.
Rumor do vento, dos sapos, dos grilos. A porta do escritório abre-se de manso, os passos de seu Ribeiro afastam-se. Uma coruja pia na torre da igreja. Terá realmente piado a coruja? Será a mesma que piada a dois anos? Talvez seja até o mesmo pio daquele tempo.
Agora seu Ribeiro está conversando com d.Glória no salão. Esqueço que eles me deixaram e que esta casa está quase deserta.
- Casimiro!
Penso que chamei Casimiro Lopes. A cabeça dele, com chapéu de couro de sertanejo, assoma de quando em quando à janela, mas ignoro se a visão que me dá é atual ou remota.
Agitam-se em mim sentimentos inconciliáveis: encolerizo-me e enterneço-me, bato na mesa e tenho vontade de chorar.
Aparentemente estou sossegado: as mãos continuam cruzadas sobre a toalha e os dedos parecem de pedra. Entretanto ameaço Madalena com o punho. Esquisito.
Distingo no ramerrão da fazenda as mais insignificantes minudências. Maria das Dores, na cozinha, dá lições ao papagaio. Tubarão rosna acolá no jardim. O gado muge no estábulo.
O salão fica longe: para irmos lá temos de atravessar um corredor comprido. Apesar disso a palestra de seu Ribeiro e d.Glória é bastante clara. A dificuldade seria reproduzir o que eles dizem. É preciso admitir que estão conversando sem palavras.
Padilha assobia no alpendre. Onde andará Padilha?
Se eu convencesse Madalena de que ela não tem razão...Se lhe explicasse que é necessário vivermos em paz...Não me entende. Não nos entendemos. O que vai acontecer será muito diferente do que esperamos. Absurdo.
Há grande silêncio. Estamos em julho. O nordeste não sopra e os sapos dormem. Quanto às corujas, Marciano subiu ao forro da igreja e acabou com elas a pau. E foram tapados os buracos de grilos.
Repito que tudo isso continua a azucrinar-me.
O que não percebo é o tique-taque do relógio. Que horas são? Não posso ver o mostrador assim às escuras. Quando me sentei aqui, ouviam-se as pancadas do pêndulo, ouviam-se muito bem. Seria conveniente dar corda ao relógio, mas não consigo mexer-me.
(Ramos, Graciliano, São Bernardo, Rio de Janeiro, Record, 1989)

1)  Escolha a alternativa que explica melhor o que está se passando com a personagem-narrador, Paulo Honório.
a) Abandonado há pouco pela amada, encontra-se numa fase transitória de solidão.
b) Preocupado em compreender o que se passou, busca recompor a imagem difusa da amada.
c) Trata-se apenas de um sado-masoquista a escarafunchar sentimentos idos e vividos.
d) Percebe-se a existência de um homem de extrema sensibilidade, esmagado por um golpe da fatalidade.
e) Entre ele e a amada havia quantidade de problemas que a convivência se tornou impossível.

2)  A leitura do texto mostra uma interpenetração de pessoas, fatos, objetos e atos que se misturam, enquanto se revelam uma escrita dificultosa na apreensão de uma realidade difusa. Dentre as respostas abaixo, qual seria a mais adequada para dar conta dessa aparência de caos?
a) Visando ao refinamento da escrita, o romancista embaralha intencionalmente os acontecimentos.
b) Trata-se de técnica modernista, empregada para traduzir confusão e embaralhamento.
c) A dificuldade decorre da natureza do assunto e do estado psicológico do narrador.
d) A interpenetração é provocada pela complexidade do assunto e distanciamentos dos fatos.
e) Homem rude e agreste, afeito ao trabalho bruto, o narrador não é capaz de ordenar acontecimentos.

3)  Escolha a alternativa que retrata melhor, à luz do texto e do próprio romance, o sentido da expressão “sou forçado” , presente no segundo parágrafo.
a) É uma obrigação moral de reparar erro cometido no passado.
b) Há uma imposição externa que obriga o narrador a revelar seu
c) Existe uma vontade de autopunir-se para livrar-se do remorso pelo mal cometido.
d) O narrador tem necessidade de escrever para provar sua capacidade.
e) Trata-se de um impulso interior, que leva o narrador a escrever para autoconhecer-se.


4)  A partir daqui os verbos, que estavam no imperfeito do indicativo, passam para o presente. Esta mudança de tempos verbais pode ser explicada como um recurso de estilo que:
a) revela um escritor vacilante no domínio dos tempos verbais.
b) visa a confundir o leitor com a mistura indiscriminada dos tempos verbais.
c) mostra que a língua portuguesa tem fronteiras temporais muito fluidas.
d) Procura superar a ideia de tempo, mostrando a arbitrária distinção de seu uso.
e) Apaga as fronteiras temporais e aproxima passado e presente.

5)  “Agitam-se em mim sentimentos inconciliáveis: encolerizo-me e enterneço-me; bato na mesa e tenho vontade de chorar.“
Momento central do texto em questão, ajuda a compreender a personalidade de Paulo Honório, personagem-narrador do romance.
Podemos dizer que se trata de:
a) personalidade fraca, abatida pelas circunstâncias.
b) personalidade rica de humanidade, que se perturba diante da adversidade.
c) personalidade complexa, perturbada diante dos acontecimentos.
d) homem forte, revoltado contra tudo e contra todos.
e) homem sentimental e lírico, incapaz de conciliar os próprios sentimentos.

6)  “A voz dela me chega aos ouvidos. Não, não é aos ouvidos. Também já não a vejo com os olhos.“
A leitura atenta do texto permite dizer que:
a) em virtude da sua perturbação psicológica, o narrador não consegue recortar com nitidez os acontecimentos.
b) É puro jogo de palavras sem outra intenção que a de confundir os acontecimentos.
c) A confusão provocada pelo estado de choque do narrador possibilita a recuperação da consciência.
d) Fragilizada, a personagem não consegue operar a distinção entre real e imaginário.
e) Tudo é possível no estado de convulsão em que se encontra o mundo do narrador.

7)  “Maria das Dores entra e vai abrir o comutador. Detenho-a: não quero luz.“
Os dois pontos ( : ) usados acima estabelecem uma relação de subordinação entre as orações. Que tipo de subordinação?
a) Temporal.
b) Final.
c) Causal.
d) Concessiva.
e) Conclusiva.

 
8)  Conheci que ( 1 ) Madalena era boa em demasia...
A culpa foi desta vida agreste que ( 2 ) me deu uma alma agreste.
Procuro recordar o que ( 3 ) dizíamos.
Terá realmente piado a coruja? Será a mesma que ( 4 ) piava a dois anos?
Esqueço que ( 5 ) eles me deixaram e que ( 6 ) esta casa está quase deserta.
Nas frases acima o “que” aparece seis vezes; em três delas é pronome relativo. Quais?
a) 1 2 4
b) 2 4 6
c) 3 4 5
d) 2 3 4
e) 2 3 5

9)  “Se eu convencesse de que ela não tem razão...Se lhe explicasse que é necessário vivermos em paz...Não me entende. Não nos entendemos. O que vai acontecer será muito diferente do que esperamos.“
No trecho acima a personagem reflete sobre fatos presentes. Se ela os colocasse ao passado, como ficariam os verbos sublinhados?
a) tivesse convencido foi entendeu seria esperaríamos
b) convencesse seria entendia será esperássemos
c) convencesse era entenderia seria esperávamos
d) convencia era entendia seria esperaríamos
e) tivesse convencido era entendia seria esperávamos

10)  Assinale a alternativa em que o texto está acentuado corretamente.
a) A princípio, metia-me grandes sustos. Achava que Virgília era a perfeição mesma, um conjunto de qualidades sólidas e finas, amorável, elegante, austera, um modêlo.
b) A princípio, metia-me grandes sustos. Achava que Virgília era a perfeição mesma, um conjunto de qualidades sólidas e finas, amorável, elegante, austera, um modelo.
c) A princípio, metia-me grandes sustos. Achava que Virgília era a perfeição mesma, um conjunto de qualidades solidas e finas, amoravel, elegante, austera, um modêlo.
d) A principio, metia-me grandes sustos. Achava que Virgilia era a perfeição mesma, um conjunto de qualidades sólidas e finas, amorável, elegante, austera, um modelo.
e) A princípio, metia-me grandes sustos. Achava que Virgília era a perfeição mesma, um conjunto de qualidades sólidas e finas, amoravel, elegante, austera, um modelo.

11)  Preencha os claros da frase transformada com as formas adequadas dos verbos assinalados na frase original.
Original:
Para você vir para a Cidade Universitária é preciso virar à direita ao ver a ponte da Alvarenga.
Transformada:
Para tu__________à Cidade Universitária é preciso que__________à direita quando_________a ponte da Alvarenga.
a) vir vire ver
b) vires vires veres
c) venhas vires vejas
d) vir virar ver
e) vires vires – vires

12)  Assinale a alternativa que está com a pontuação correta.
a) Citando o dito da rainha de Navarra, ocorre-me que entre o nosso povo, quando uma pessoa vê outra pessoa arrufada, costuma perguntar-lhe: “Gentes, quem matou seus cachorrinhos?”
b) Citando o dito, da rainha de Navarra, ocorre-me que entre o nosso povo quando, uma pessoa vê outra pessoa arrufada costuma perguntar-lhe: “Gentes, quem matou seus cachorrinhos?”
c) Citando, o dito da rainha de Navarra, ocorre-me que entre o nosso povo, quando uma pessoa vê outra arrufada costuma perguntar-lhe: “Gentes quem matou seus cachorrinhos?”
d) Citando o dito da rainha de Navarra, ocorre-me que entre o nosso povo, quando uma pessoa vê outra pessoa arrufada, costuma perguntar-lhe: Gentes quem matou seus cachorrinhos?
e) Citando o dito, da rainha de Navarra, ocorre-me, que, entre o nosso povo, quando uma pessoa vê outra pessoa arrufada, costuma perguntar-lhe “Gentes, quem matou seus cachorrinhos?”

13)  Leia as frases abaixo e assinale a que está correta.
a) A jovem que eu lhe falei à pouco vai ser entrevistada.
b) A jovem que há pouco foi entrevistada é aquela que eu lhe falei.
c) A jovem de cuja eu lhe falei há pouco é aquela que foi entrevistada.
d) A jovem que há pouco foi entrevistada é aquela de que eu lhe falei.
e) A jovem que há pouco foi entrevistada é aquela que eu lhe falei.

14)  “João gostoso era carregador de feira-livre e morava no Morro da Babilônia num barracão sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.”
Poema de recorte social marcante, foi entretanto traço quase acidental de seu autor, mais afeito ao tratamento lírico dos sentimentos. Em qual dos movimentos literários abaixo se enquadra o poema? 
a) Surrealismo
b) Pós-modernismo
c) Modernismo
d) Romantismo
e) Pré-modernismo

15)  A Leitura de Mensagem, de Fernando Pessoa, permite a identificação de certas linhas de força que guiam e, a até certo ponto, singularizam o espírito do homem português, dando-lhe marca muito especial.
Dentre as alternativas abaixo, em qual se enquadra melhor essa idéia?
a) Preocupação com os destinos de Portugal do século vinte
b) Preocupação com a história político social de Portugal
c) Recorrência de certas constantes culturais portuguesas, como o messianismo
d) Reordenação da história portuguesa desde Dom Sebastião
e) A marca da religião católica na alma portuguesa como força determinante
16)  “Amor é um fogo que arde sem se ver,
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente,
É dor que desatina sem doer.”
De poeta muito conhecido, esta é a primeira estrofe de um poema que parece comprazer-se com o paradoxo, enfeitando sensações contraditórias do sentimento humano, se examinadas sob o prisma da razão.
Indique na relação abaixo o nome do autor.
a) Bocage
b) Camilo Pessanha
c) Gil Vicente
d) Luís de Camões
e) Manuel Bandeira

17)  “Saímos à varanda, dali à chácara, e foi então que notei uma circunstância. Eugênia coxeava um pouco, tão pouco, que eu cheguei a perguntar-lhe se machucava o pé. A mãe calou-se; a filha respondeu sem titubear:
- Não, Senhor, sou coxa de nascença.”
Trecho fundamental do romance, não só dá título a um capítulo, como serve para definir, com bastante nitidez, o caráter da personagem central.
De que obra se trata? 
a) Amor de Perdição.
b) Fogo Morto.
c) São Bernardo.
d) Memórias Póstumas de Brás Cubas.
e) O primo Basílio.


18)  Empenhado em diagnosticar problemas da sociedade, o romance realista-naturalista os toma como peças de demonstração de tese. Com O Primo Basílio, Eça de Queirós trata o adultério na sociedade lisboeta, buscando as causas que teriam levado Luísa, a personagem principal, a cometê-lo.
Escolha dentre as alternativas seguintes a que mais se aproxima das causas que abriram a Luísa o caminho do adultério.
a) Personalidade forte, Luísa conduz a ação de acordo com suas ambições pessoais.
b) Frívola e em disponibilidade, ela fica à mercê de circunstâncias propícias.
c) Doentiamente apaixonada pelo primo, deixa-se conduzir sem opor resistência.
d) Insatisfeita com o marido, burguês insensível, busca na aventura sua satisfação.
e) Conhecedora dos casos extra-conjugais do marido, procura uma forma de vingança.

19)  Numa espécie de projeção utópica, sua personagem, um tipo de idealista bobo e desacreditado, alude a mudanças na estrutura social do Nordeste com o advento de outra ordem em que o privilégio ceda ao princípio da justiça. Daí a crítica falar inclusive em figura quixotesca.
Dentre as personagens de Fogo Morto, qual se enquadra melhor nessa definição? 
a) Lula de Holanda.
b) Coronel Zé Paulino.
c) Antônio Silvino.
d) Mestre Zé Amaro.
e) Vitorino Carneiro da Cunha.

20)  Dentre os contos de Sagarana existe um em que o narrador sustenta um duelo literário com outro poeta, chamado Quem será, e no qual se fazem várias considerações sobre a natureza da poesia. Numa metáfora do condicionamento do homem, resistente a aceitação do novo e diferente, o autor leva a personagem a passar por um período de cegueira. A partir daí a personagem descobre a mutilação dos sentidos, que agora se abrem a outras vertentes da realidade.
Em qual dos contos abaixo se discute essa questão?
a) A hora e a vez de Augusto Matraga
b) Duelo
c) Conversa de Bois
d) São Marcos
e) Corpo fechado



GABARITO DOS EXERCÍCIOS



1 B ,2 C ,3 E ,4 E ,5 C

6 A ,7 C ,8 D ,9 E ,10 B 

11 E ,12 A ,13 D ,14 C ,15 C

16 D ,17 D ,18 B ,19 E ,20 D

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