terça-feira, 19 de maio de 2015




                                Amor de perdição
Simão Botelho amava. Aí está uma palavra única, explicando o que parecia absurda reforma aos dezessete anos.
Amava Simão uma sua vizinha, menina de quinze anos, rica herdeira, regularmente bonita e bem-nascida. Da janela de seu quarto é que ele a vira pela primeira vez, para amá-la sempre. Não ficara ela incólume da ferida que fizera no coração do vizinho: amou-o também, e com mais seriedade que o usual de seus anos. [...]
O magistrado e sua família eram odiosos ao pai de Teresa [de Albuquerque], por questões de litígios, em que Domingos Botelho lhes deu sentenças contra. [...] É, pois, evidente que o amor de Teresa, declinando de si o dever de obtemperar e sacrificar-se ao justo azedume de seu pai, era verdadeiro e forte.
E este amor era singularmente discreto e cauteloso. Viram-se e falaram-se três meses, sem darem rebate à vizinhança, e nem sequer suspeitas às duas famílias. O destino que ambos se prometiam era o mais honesto: ele ia formar-se para sustentá-la, se não tivessem outros recursos; ela esperava que seu velho pai falecesse para, senhora sua, lhe dar, com o coração, o seu grande patrimônio. [...]
Na véspera de sua ida para Coimbra, estava Simão Botelho despedindo-se da suspirosa menina, quando subitamente ela foi arrancada da janela. O alucinado moço ouviu gemidos daquela voz que, um momento antes, soluçava comovida por lágrimas de saudade. Ferveu-lhe o sangue na cabeça; contorceu-se no quarto como o tigre contra as grades inflexíveis da jaula. Teve tentações de se matar, na impotência de socorrê-la. As restantes horas daquela noite passou-as em raivas e projetos de vingança. Com o amanhecer esfriou-lhe o sangue, e renasceu a esperança com os cálculos.
Quando o chamaram para partir para Coimbra, lançou-se do leito de tal modo transfigurado, que sua mãe, avisada do rosto amargurado dele, foi ao quarto interrogá-lo e despersuadi-lo de ir enquanto assim estivesse febril. Simão, porém, entre mil projetos, achara melhor o de ir para Coimbra, esperar lá notícias de Teresa, e vir a ocultas a Viseu falar com ela. Ajuizadamente discorrera ele; que a sua demora agravaria a situação de Teresa.

BRANCO, Camilo Castelo. Amor de perdição. São Paulo: Ática, 1994. p. 26. (Fragmento).
  • Incólume: ilesa, inalterada.
  • Litígios: disputas legais.
  • Declinando: recusando, tirando (de si).
  • Obtemperar: concordar.
  • Sem dar rebate: sem se denunciar.
  • Despersuadi-lo: fazê-lo mudar de opinião, dissuadi-lo.
  • Viseu: cidade portuguesa.

1.   Nesse trecho, o narrador apresenta o nascimento do amor entre Teresa e Simão Botelho. Como surge esse sentimento?
►  O que, no trecho, revela que esse amor é um sentimento arrebatado, característico dos romances românticos? Justifique.
►  Há, no trecho, elementos típicos que fizeram esse modelo de narrativa cair no gosto do público. Quais são eles?
2.    O narrador descreve a jovem por quem Simão se apaixonou. Que características de Teresa ele destaca?
►  De que maneira algumas dessas características revelam a sociedade da época retratada nos romances românticos?
3.   No momento em que Simão e Teresa se despedem em razão da partida do jovem para Coimbra, a moça é "arrancada" da janela. Que sentimentos esse fato desperta em Simão?
►  O narrador descreve a reação do jovem diante desse fato. Como essa descrição revela a natureza arrebatada e passional do amor que ele sente por Teresa?
4.   Simão Botelho, antes de se apaixonar por Teresa, era um jovem de temperamento violento, cercado por más companhias e constantemente envolvido em brigas. Leia este outro trecho do romance.
No espaço de três meses fez-se maravilhosa mudança nos costumes de Simão. As companhias da ralé desprezou-as. Saía de casa raras vezes, ou só, ou com a irmã mais nova, sua predileta. [...] Em casa encerrava-se no seu quarto, e saía quando o chamavam para a mesa. [...]
Simão Botelho amava. Aí está uma palavra única, explicando o que parecia absurda reforma aos dezessete anos.

BRANCO, Camilo Castelo. Amor de perdição. São Paulo: Ática, 1994. p. 25-26. (Fragmento).
►  O narrador revela que o amor provoca em Simão uma grande transformação. Qual é ela?
►  Explique de que modo essa transformação confere a Simão as características que o definirão como um herói romântico.
5.  A transformação vivida por Simão é exigida por uma concepção de amor que define os romances românticos. Que concepção é essa? Explique.


Gabarito dos exercícios


1. Simão vê Teresa pela primeira vez da janela de seu quarto e por ela se apaixona "irremediavelmente", sendo correspondido em seu amor. Durante três meses, o contato dos jovens se dá dessa forma, revelando a pureza e a inocência desse sentimento: veem-se pelas respectivas janelas de seus quartos, trocam juras de amor e fazem promessas de um futuro juntos.
►  O fato de ambos se apaixonarem à primeira vista de maneira irremediável, como sugerem os trechos a seguir: "ele a vira pela primeira vez, para amá-la sempre"; "amou-o também, e com mais seriedade que o usual de seus anos". O arrebatamento desse amor pode ser identificado, ainda, no desespero de Simão diante da violência com que sua amada é retirada da janela através da qual os jovens se despediam.

►  O amor impossível entre um rapaz e uma moça pertencentes a famílias "inimigas"; a força do sentimento que leva Teresa e Simão a ignorarem as oposições familiares; a separação do casal e o sofrimento que isso gera nos dois jovens.

2. O narrador descreve Teresa como uma jovem de "quinze anos, rica herdeira, regularmente bonita" e pertencente a uma boa família ("bem-nascida").

►  A referência ao fato de Teresa ser uma rica herdeira e "bem-nascida" revela que a moça e sua família têm prestígio e pertencem à burguesia, grupo social geralmente retratado nos romances românticos.

3. Ao ver sua amada ser "arrancada" da janela, Simão é tomado por desespero, fúria e impotência, já que nada pode fazer para "resgatá-la". Nessa noite ele perde o sono, pensando em "projetos de vingança" contra quem impõe tal sofrimento a Teresa.

► O narrador descreve com exagero as reações de Simão por meio de adjetivos ("o alucinado moço") e comparações ("contorceu-se [...] como o tigre contra as grades"). Isso revela o desespero do jovem ao se ver separado de Teresa e, depois, no momento de partir ("lançou-se do leito [...] transfigurado"). Os gestos e pensamentos do rapaz, na cena, enfatizam a natureza arrebatada de seus sentimentos.

4. Simão passa a ter uma vida calma, abandona as más companhias e a vida desregrada, tornando-se quase um recluso.

► O amor por Teresa promove uma espécie de purificação em Simão, apagando os indícios do comportamento desregrado que teve antes de conhecer a jovem. Ao adotar uma vida tranquila, distante de brigas e de companhias inadequadas, o jovem passa a agir de acordo com os valores positivos que se associam ao herói romântico: recolhimento, caráter nobre, correção moral.

5. No trecho, o amor é apresentado como o meio para a transformação e redenção do indivíduo. É esse sentimento que regenera o ser humano quando a razão se mostra incapaz de fazê-lo. No caso de Simão, é o amor por Teresa que o torna uma pessoa melhor, merecedora do afeto de sua amada.
 

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