TRABALHANDO: LEITURA/ REDAÇÃO/ INTERTEXTUALIADE
Proposta 1: Leia o conto abaixo e produza uma narração recriando a história de negrinha, de modo a dar-lhe outro final.
Proposta
2: Produza um texto dissertativo sobre a condição do negro no Brasil,
relacionando o texto “Negrinha” com o capitulo 20 do livro “1808”.
Negrinha ( Monteiro Lobato)
Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Preta? Não; fusca, mulatinha escura, de cabelos ruços e olhos assustados.
Nascera
na senzala, de mãe escrava, e seus primeiros anos vivera-os pelos
cantos escuros da cozinha, sobre velha esteira e trapos imundos. Sempre
escondida, que a patroa não gostava de crianças.
Excelente
senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do mundo, amimada dos padres, com
lugar certo na igreja e camarote de luxo reservado no céu. Entaladas as
banhas no trono (uma cadeira de balanço na sala de jantar), ali bordava,
recebia as amigas e o vigário, dando audiências, discutindo o tempo.
Uma virtuosa senhora em suma — “dama de grandes virtudes apostólicas,
esteio da religião e da moral”, dizia o reverendo.
Ótima,
a dona Inácia. Mas não admitia choro de criança. Ai! Punha-lhe os
nervos em carne viva. Viúva sem filhos, não a calejara o choro da carne
de sua carne, e por isso não suportava o choro da carne alheia. Assim,
mal vagia, longe, na cozinha, a triste criança, gritava logo nervosa:
— Quem é a peste que está chorando aí?
Quem
havia de ser? A pia de lavar pratos? O pilão? O forno? A mãe da
criminosa abafava a boquinha da filha e afastava-se com ela para os
fundos do quintal, torcendo-lhe em caminho beliscões de desespero.
— Cale a boca, diabo!
No entanto, aquele choro nunca vinha sem razão. Fome quase sempre, ou frio, desses que entanguem pés e mãos e fazem-nos doer...
Assim
cresceu Negrinha — magra, atrofiada, com os olhos eternamente
assustados. Órfã aos quatro anos, por ali ficou feito gato sem dono,
levada a pontapés. Não compreendia a ideia dos grandes. Batiam-lhe
sempre, por ação ou omissão. A mesma coisa, o mesmo ato, a mesma palavra
provocava ora risadas, ora castigos. Aprendeu a andar, mas quase não
andava. Com pretextos de que às soltas reinaria no quintal, estragando
as plantas, a boa senhora punha-a na sala, ao pé de si, num desvão da
porta.
— Sentadinha aí, e bico, hein?
Negrinha imobilizava-se no canto, horas e horas.
— Braços cruzados, já, diabo!
Cruzava
os bracinhos a tremer, sempre com o susto nos olhos. E o tempo corria. E
o relógio batia uma, duas, três, quatro, cinco horas — um cuco tão
engraçadinho! Era seu divertimento vê-lo abrir a janela e cantar as
horas com a bocarra vermelha, arrufando as asas. Sorria-se então por
dentro, feliz um instante.
Puseram-na depois a fazer crochê, e as horas se lhe iam a espichar trancinhas sem fim.
Que
ideia faria de si essa criança que nunca ouvira uma palavra de carinho?
Pestinha, diabo, coruja, barata descascada, bruxa, pata-choca, pinto
gorado, mosca-morta, sujeira, bisca, trapo, cachorrinha, coisa-ruim,
lixo — não tinha conta o número de apelidos com que a mimoseavam. Tempo
houve em que foi a bubônica. A epidemia andava na berra, como a grande
novidade, e Negrinha viu-se logo apelidada assim — por sinal que achou
linda a palavra. Perceberam-no e suprimiram-na da lista. Estava escrito
que não teria um gostinho só na vida — nem esse de personalizar a
peste...
O
corpo de Negrinha era tatuado de sinais, cicatrizes, vergões. Batiam
nele os da casa todos os dias, houvesse ou não houvesse motivo. Sua
pobre carne exercia para os cascudos, cocres e beliscões a mesma atração
que o ímã exerce para o aço. Mãos em cujos nós de dedos comichasse um
cocre, era mão que se descarregaria dos fluidos em sua cabeça. De
passagem. Coisa de rir e ver a careta...
A
excelente dona Inácia era mestra na arte de judiar de crianças. Vinha
da escravidão, fora senhora de escravos — e daquelas ferozes, amigas de
ouvir cantar o bolo e estalar o bacalhau. Nunca se afizera ao regime
novo — essa indecência de negro igual a branco e qualquer coisinha: a
polícia! “Qualquer coisinha”: uma mucama assada ao forno porque se
engraçou dela o senhor; uma novena de relho porque disse: “Como é ruim, a
sinhá!”...
O
13 de Maio tirou-lhe das mãos o azorrague, mas não lhe tirou da alma a
gana. Conservava Negrinha em casa como remédio para os frenesis.
Inocente derivativo:
— Ai! Como alivia a gente uma boa roda de cocres bem fincados!...
Tinha
de contentar-se com isso, judiaria miúda, os níqueis da crueldade.
Cocres: mão fechada com raiva e nós de dedos que cantam no coco do
paciente. Puxões de orelha: o torcido, de despegar a concha (bom! bom!
bom! gostoso de dar) e o a duas mãos, o sacudido. A gama inteira dos
beliscões: do miudinho, com a ponta da unha, à torcida do umbigo,
equivalente ao puxão de orelha. A esfregadela: roda de tapas, cascudos,
pontapés e safanões a uma — divertidíssimo! A vara de marmelo, flexível,
cortante: para “doer fino” nada melhor!
Era
pouco, mas antes isso do que nada. Lá de quando em quando vinha um
castigo maior para desobstruir o fígado e matar as saudades do bom
tempo. Foi assim com aquela história do ovo quente.
Não
sabem! Ora! Uma criada nova furtara do prato de Negrinha — coisa de rir
— um pedacinho de carne que ela vinha guardando para o fim. A criança
não sofreou a revolta — atirou-lhe um dos nomes com que a mimoseavam
todos os dias.
— “Peste?” Espere aí! Você vai ver quem é peste — e foi contar o caso à patroa.
Dona Inácia estava azeda, necessitadíssima de derivativos. Sua cara iluminou-se.
— Eu curo ela! — disse, e desentalando do trono as banhas foi para a cozinha, qual perua choca, a rufar as saias.
— Traga um ovo.
Veio
o ovo. Dona Inácia mesmo pô-lo na água a ferver; e de mãos à cinta,
gozando-se na prelibação da tortura, ficou de pé uns minutos, à espera.
Seus olhos contentes envolviam a mísera criança que, encolhidinha a um
canto, aguardava trêmula alguma coisa de nunca visto. Quando o ovo
chegou a ponto, a boa senhora chamou:
— Venha cá!
Negrinha aproximou-se.
— Abra a boca!
Negrinha
abriu aboca, como o cuco, e fechou os olhos. A patroa, então, com uma
colher, tirou da água “pulando” o ovo e zás! na boca da pequena. E antes
que o urro de dor saísse, suas mãos amordaçaram-na até que o ovo
arrefecesse. Negrinha urrou surdamente, pelo nariz. Esperneou. Mas só.
Nem os vizinhos chegaram a perceber aquilo. Depois:
— Diga nomes feios aos mais velhos outra vez, ouviu, peste?
E a virtuosa dama voltou contente da vida para o trono, a fim de receber o vigário que chegava.
—
Ah, monsenhor! Não se pode ser boa nesta vida... Estou criando aquela
pobre órfã, filha da Cesária — mas que trabalheira me dá!
— A caridade é a mais bela das virtudes cristas, minha senhora —murmurou o padre.
— Sim, mas cansa...
— Quem dá aos pobres empresta a Deus.
A boa senhora suspirou resignadamente.
— Inda é o que vale...
Certo
dezembro vieram passar as férias com Santa Inácia duas sobrinhas suas,
pequenotas, lindas meninas louras, ricas, nascidas e criadas em ninho de
plumas.
Do
seu canto na sala do trono, Negrinha viu-as irromperem pela casa como
dois anjos do céu — alegres, pulando e rindo com a vivacidade de
cachorrinhos novos. Negrinha olhou imediatamente para a senhora, certa
de vê-la armada para desferir contra os anjos invasores o raio dum
castigo tremendo.
Mas
abriu a boca: a sinhá ria-se também... Quê? Pois não era crime brincar?
Estaria tudo mudado — e findo o seu inferno — e aberto o céu? No enlevo
da doce ilusão, Negrinha levantou-se e veio para a festa infantil,
fascinada pela alegria dos anjos.
Mas
a dura lição da desigualdade humana lhe chicoteou a alma. Beliscão no
umbigo, e nos ouvidos, o som cruel de todos os dias: “Já para o seu
lugar, pestinha! Não se enxerga”?
Com
lágrimas dolorosas, menos de dor física que de angústia moral
—sofrimento novo que se vinha acrescer aos já conhecidos — a triste
criança encorujou-se no cantinho de sempre.
— Quem é, titia? — perguntou uma das meninas, curiosa.
—
Quem há de ser? — disse a tia, num suspiro de vítima. — Uma caridade
minha. Não me corrijo, vivo criando essas pobres de Deus... Uma órfã.
Mas brinquem, filhinhas, a casa é grande, brinquem por aí afora.
—
Brinquem! Brincar! Como seria bom brincar! — refletiu com suas
lágrimas, no canto, a dolorosa martirzinha, que até ali só brincara em
imaginação com o cuco. Chegaram as malas e logo:
— Meus brinquedos! — reclamaram as duas meninas. Uma criada abriu-as e tirou os brinquedos.
Que
maravilha! Um cavalo de pau!... Negrinha arregalava os olhos. Nunca
imaginara coisa assim tão galante. Um cavalinho! E mais... Que é aquilo?
Uma criancinha de cabelos amarelos... que falava “mamã”... que
dormia...
Era
de êxtase o olhar de Negrinha. Nunca vira uma boneca e nem sequer sabia
o nome desse brinquedo. Mas compreendeu que era uma criança artificial.
— É feita?... — perguntou, extasiada.
E
dominada pelo enlevo, num momento em que a senhora saiu da sala a
providenciar sobre a arrumação das meninas, Negrinha esqueceu o
beliscão, o ovo quente, tudo, e aproximou-se da criatura de louça.
Olhou-a com assombrado encanto, sem jeito, sem ânimo de pegá-la.
As meninas admiraram-se daquilo.
— Nunca viu boneca?
— Boneca? — repetiu Negrinha. — Chama-se Boneca?
Riram-se as fidalgas de tanta ingenuidade.
— Como é boba! — disseram. — E você como se chama?
— Negrinha.
As
meninas novamente torceram-se de riso; mas vendo que o êxtase da
bobinha perdurava, disseram, apresentando-lhe a boneca: — Pegue!
Negrinha
olhou para os lados, ressabiada, como coração aos pinotes. Que ventura,
santo Deus! Seria possível? Depois pegou a boneca. E muito sem jeito,
como quem pega o Senhor menino, sorria para ela e para as meninas, com
assustados relanços de olhos para a porta. Fora de si, literalmente...
era como se penetrara no céu e os anjos a rodeassem, e um filhinho de
anjo lhe tivesse vindo adormecer ao colo. Tamanho foi o seu enlevo que
não viu chegar a patroa, já de volta. Dona Inácia entreparou, feroz, e
esteve uns instantes assim, apreciando a cena. Era tal a alegria das
hóspedes ante a surpresa extática de Negrinha, e tão grande a força
irradiante da felicidade desta, que o seu duro coração afinal bambeou. E
pela primeira vez na vida foi mulher. Apiedou-se.
Ao
percebê-la na sala Negrinha havia tremido, passando-lhe num relance
pela cabeça a imagem do ovo quente e hipóteses de castigos ainda piores.
E incoercíveis lágrimas de pavor assomaram-lhe aos olhos.
Falhou
tudo isso, porém. O que sobreveio foi a coisa mais inesperada do mundo —
estas palavras, as primeiras que ela ouviu, doces, na vida:
— Vão todas brincar no jardim, e vá você também, mas veja lá, hein?
Negrinha
ergueu os olhos para a patroa, olhos ainda de susto e terror. Mas não
viu mais a fera antiga. Compreendeu vagamente e sorriu. Se alguma vez a
gratidão sorriu na vida, foi naquela surrada carinha...
Varia
a pele, a condição, mas a alma da criança é a mesma — na princesinha e
na mendiga. E para ambos é a boneca o supremo enlevo. Dá a natureza dois
momentos divinos à vida da mulher: o momento da boneca — preparatório
—, e o momento dos filhos — definitivo. Depois disso, está extinta a
mulher.
Negrinha,
coisa humana, percebeu nesse dia da boneca que tinha uma alma. Divina
eclosão! Surpresa maravilhosa do mundo que trazia em si e que
desabrochava, afinal, como fulgurante flor de luz. Sentiu-se elevada à
altura de ente humano. Cessara de ser coisa — e doravante ser-lhe-ia
impossível viver a vida de coisa. Se não era coisa! Se sentia! Se
vibrava!
Assim foi — e essa consciência a matou.
Terminadas
as férias, partiram as meninas levando consigo a boneca, e a casa
voltou ao ramerrão habitual. Só não voltou a si Negrinha. Sentia-se
outra, inteiramente transformada. Dona Inácia, pensativa, já a não
atazanava tanto, e na cozinha uma criada nova, boa de coração,
amenizava-lhe a vida.
Negrinha,
não obstante, caíra numa tristeza infinita. Mal comia e perdera a
expressão de susto que tinha nos olhos. Trazia-os agora nostálgicos,
cismarentos.
Aquele dezembro de férias, luminosa rajada de céu trevas adentro do seu doloroso inferno, envenenara-a.
Brincara
ao sol, no jardim. Brincara!... Acalentara, dias seguidos, a linda
boneca loura, tão boa, tão quieta, a dizer mamã, a cerrar os olhos para
dormir. Vivera realizando sonhos da imaginação. Desabrochara-se de alma.
Morreu
na esteirinha rota, abandonada de todos, como um gato sem dono. Jamais,
entretanto, ninguém morreu com maior beleza. O delírio rodeou-a de
bonecas, todas louras, de olhos azuis. E de anjos... E bonecas e anjos
remoinhavam-lhe em torno, numa farândola do céu. Sentia-se agarrada por
aquelas mãozinhas de louça — abraçada, rodopiada. Veio a tontura; uma
névoa envolveu tudo. E tudo regirou em seguida, confusamente, num disco.
Ressoaram vozes apagadas, longe, e pela última vez o cuco lhe apareceu
de boca aberta.
Mas, imóvel, sem rufar as asas. Foi-se apagando. O vermelho da goela desmaiou...
E
tudo se esvaiu em trevas. Depois, vala comum. A terra papou com
indiferença aquela carnezinha de terceira — uma miséria, trinta quilos
mal pesados...
E de Negrinha ficaram no mundo apenas duas impressões. Uma cômica, na memória das meninas ricas.
— “Lembras-te daquela bobinha da titia, que nunca vira boneca?”
Outra de saudade, no nó dos dedos de dona Inácia.
— “Como era boa para um cocre!...”
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