VIVER OUTRA VEZ – Márcio Barbosa
Com o solzinho da tarde, ela entrou no apartamento. Sábado.
– A entrevista, lembra?
Olhou as roupas espalhadas, móveis empoeirados e ele desculpou-se:
– Poucos vêm aqui. Achava que minha próxima visita seria a morte.
Observou-a. Pequena, inquieta, mãozinhas curiosas nos discos e livros.
Depois, pernas cruzadas – gravador ligado – murmurou, voz rouca:
– O terreiro do bairro quer fazer um trabalho sobre memória.
Ele, aborrecido, negou depoimento. Tentava esquecer o passado –
fantasma que se escondia sob a cama.
– O senhor ajudou a fundar associações, a desmascarar a ideologia da
falsa democracia racial – ela insistiu.
Um dia fora professor. Mas ela não sabia que agora não era mais nada?
Que, há algum tempo, o coração vinha ameaçando parar?
– Minha filha, esqueça-se de mim.
Com o esforço de levantar-se arregalou os olhos. Ela assustou-se:
– Que foi?
– Tonturas, já passa.
Caiu, sem dizer mais nada.
Apavorada, ela procurou vizinhos. Um taxista veio. Gordo, dirigia com
a barriga encostada ao volante. No pronto-socorro lotado, brigaram para
serem atendidos. Um jovem médico os recebeu, perguntando:
– Seu pai? É só pressão um pouco alta. Vocês da raça negra são muito
sujeitos a ter hipertensão.
Receitou maleato de enalapril e mandou-os embora.
Na volta, no táxi, ela ouviu-o, voz trêmula de velho, sussurrar
“obrigado”.
– Por fazer o senhor ficar nervoso – sorriu -, ir para o hospital?
– Por se preocupar comigo. Sabe, já estou no fim…
Ele olhou pela janela do carro. Viu crianças sem camisas jogando
futebol nas ruas.
– Só não pensei – continuou – que fosse terminar viúvo, sem filhos,
aqui, neste bairro, que é quase outra cidade. Quem povoou Perdizes, Bela
Vista? A negrada. Minha família sempre morou lá.
– Nasci aqui – ela afirmou. – É legal. Um pouco perigoso,
ultimamente. Uns amigos morrendo por causa de drogas. Dezesseis, dezessete
anos. Não lhe parece que existe um plano para exterminar nosso povo?
O que o tocou, quando ela ergueu o rosto e fitou-o? Os olhos úmidos?
Quase menina, tão preocupada com sua gente. Queria dizer-lhe para não se
iludir, mas a frase ficou presa dentro do peito, mesmo quando ela voltou
outras vezes, depois do trabalho, para ver como estava. Um dia chegou, tirou
o walk-man, passou os dedos nos móveis e exclamou:
– Tem tanto pó!
– Foi acumulando com as decepções – ele brincou.
No dia seguinte, de bermudas, coxas roliças à mostra, ela espanou,
varreu. Não podia ver nada envelhecer? Pensava, com a alegria de menina,
em remoçá-lo? Num domingo, chegou com discos:
– Racionais, conhece? Bom pra caramba.
Ouviu e gostou. Parecia escutar a si mesmo nos versos dos raps, rapaz
crescendo revoltado nos cortiços do Bixiga. Mas o que a moça queria,
enchendo o lugar com música, verificando se comia direito, arrumando as
camisas no guarda-roupa?
– Vê-lo recuperar-se – ela dizia. – Já está mais moço.
Acreditava no poder de cura de mãos movidas por carinho. Deu-lhe as
suas e levou-o a bares onde pagodeiros punham a alma para percutir os
instrumentos. Dançou com ele, sob olhares curiosos, diferentes daqueles que
os vizinhos lhes dirigiam, quando passavam nas ruas, mãos entrelaçadas.
Ouvia-os dizer: Podia ser sua filha, que sem-vergonha.
Ela nem ligava. O velho mais desiludido tornava-se o mais animado.
O homem que ajudara seu povo a se organizar despertava, às vezes, no trovão
da gargalhada. Mas, num sábado, tristezas de outrora emergiram no poço
dos olhos. Ao vislumbrá-las, fez de tudo para levá-lo à praia. Pularam
sete ondas, despachando as coisas ruins que pesavam nos ombros. Gotas de
água em seus cabelos eram minúsculos sóis. Deitadinhos na areia, contou a
ele sobre o pai, disse que jamais o conhecera. Os olhos marejaram, uma
sombra passou por seu rosto. Então, mudou de assunto e puxou-o para
brincar na água.
Voltaram da viagem à noite. Entraram no pequeno apartamento rindo
de tudo, de nada. Dono ainda de olhos tristes, mas animado. Bateu-lhe no
peito sem feri-lo. Acariciou sua carapinha. Depois, olhou-o durante um bom
tempo e beijou sua boca sorridente. Idade pra ser o pai?
– Sou virgem – ela murmurou. – Não posso engravidar.
As roupas ficaram sobre o tapete, espalhadas.
De mãos dadas na padaria, no mercado, ouviam os vizinhos:
É a sobrinha?- uns perguntavam.
Amante. – outros diziam, baixinho.
Ele ia receber a aposentadoria e ficava no ponto de ônibus meia hora.
Enquanto outros reclamavam, permanecia impassível, dono de um segredo.
É a concubi na. – Parecia escutar alguém sussurrando.
Sentia-se leve, até ser acometido por uma dorzinha besta no peito.
No centro da sala, o homem sentado no sofá é uma pálida lembrança
daquele que, outrora, acreditara na sua gente. Que fantasmas o acompanhariam
ao cemitério? Ela assustou-se, ao vê-lo com as mãos sobre o peito.
– Coração?
– Um coração enfraquecido pelas desilusões.
Por que não falava desses fantasmas?
– Não confia em mim? Quer dizer que eu não sou nada?
– O gravador – ele pediu, imediatamente após ouvi-la falar.
Esperou-a tirar o sony da bolsa e continuou:
– No início do século, previa-se o desaparecimento da nossa, não digo
raça, que só existe a raça humana. E melhor etnia. As elites brasileiras queriam
um país sem negros e mulatos. Quando soube dessas idéias, a luz da revolta
me iluminou. Uns amigos falaram-me sobre Zumbi, sobre os quilombos,
sobre união. Acreditei que a união fosse possível. Mas o sonho se desfez tão
rápido! Os amigos se cansaram. O nosso povo? Desinteressado, apático. Não
sei – enxugou uma lágrima – como não desapareceu.
– O que vocês fizeram foi bonito.
– São coisas que eu preciso esquecer.
– Hoje os problemas são os mesmos. Mas há pessoas jovens, querendo
aprender, como eu. Quero acreditar em algo. Nosso povo sobreviveu porque
acreditou na vida.
– É verdade. Parece que nós temos de adquirir uma força tão grande,
parece que um amor pela vida se enraíza tão fundo dentro da gente, que nada
nos abala com facilidade. E se a gente cai, é pra levantar mais forte; se
apanhamos, voltamos a brigar com mais garra; se choramos, também
aprendemos a extrair, lá de dentro, uma gargalhada tão gostosa, que é como
se toda a alegria do mundo coubesse em nosso peito. Somos negros e temos
essa força. Isso é maravilhoso.
Ela abraçou-o, beijou-o. Só então ele se deu conta de que falara com
entusiasmo. Uma parte do sonho ainda vivia. Mas as dores no peito
persistiram. Ela vinha mais vezes, preparava arroz integral, moderou no sal
e tirou o açúcar branco.
– A pinga com carqueja eu não jogo fora – ele protestou.
Era para diabetes, um amigo tinha ensinado.
Ficava irritado com os excessos de cuidados. No fundo, sentia falta
quando ela não vinha. A menina de uma geração tão diferente, com quem
reaprendia a viver. A moça que acreditava nas coisas em que ele acreditara.
Num domingo, sentindo o relógio no peito se acelerar, disse-lhe:
– Não vou durar muito. Só lamento não ter tido filhos.
Notou que ela ficou calada, pensativa. Escondia algo?
Veio na segunda-feira. Preocupada, tensa. Acusou-o de cerceá-la. Tensão
pré-menstrual? Que havia?
– Estou grávida – disse, por fim. – Não posso. Tenho estudos.
Também não quero um filho pra crescer como eu, sem pai.
Foi até a janela. Suas lágrimas rolavam como a chuva lá fora.
– Um filho? – ele perguntou, incrédulo. – A soma do meu e do teu
sonho. Olhe – pegou-lhe a mão e pôs sobre seu próprio peito – parou de
doer. Podemos criar esse filho, se você quiser. – Então abraçou-a e, com a
voz embargada, soluçando, falou: – Te amo.
Quando eles passavam, grávidos, ouviam os vizinhos comentarem:
É o filho – uns diziam.
O neto – outros apostavam.
– É o amor nos recriando – diziam um ao outro.
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