Rubem
Alves conta como se apaixonou pela escola da ponte, em Portugal, um
lugar único, onde alunos e professores convivem como amigos na fascinante
experiência da descoberta. o escritor e educador - que estará no VII Congresso
e feira de Educação Saber 2003 - fala sobre esse arrebatamento, num texto
especial para educação
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Vou contar um caso de amor. Amor à primeira vista. Eu me apaixonei
pela escola da ponte. Bastou vê-la para que um passado reverberasse dentro de
mim não tenho memórias dolorosas do grupo escolar. As coisas a serem aprendidas
eram fáceis e eu as aprendia sem esforço. Mas minha efervescência intelectual -
pois as crianças também têm efervescências intelectuais - estava em outro
lugar: no mundo que começava quando eu saía da escola.
Eu me levantava às 5h e me punha a andar pela casa fazendo
barulho. Queria que os adultos dorminhocos despertassem do seu sono para o
mundo maravilhoso que aparecia com a luz do dia. Minha curiosidade me levou a
desmontar o relógio de pulso de minha mãe, o único que ela tinha. Queria saber
como ele funcionava, aquela engrenagem fascinante. Infelizmente, não consegui
montá-lo de novo.
No grupo escolar, nos ensinavam o que o programa mandava: o nome
de serras, serra da Mata da Corda, do Espinhaço, da Bocaina; o nome de
afluentes de rios distantes, dos quais a única coisa que aprendíamos eram... os
nomes. O que me foi útil no exame de admissão, porque me perguntaram o nome da
segunda maior ilha fluvial do mundo. Tupinambarana. Eu sabia o nome. Mas ainda
hoje, nada sei sobre a ilha.
Era tempo da segunda guerra mundial. As batalhas entravam em nossa
casa pelo rádio. "E Stalingrado continua a resistir." "Aviões
aliados martelaram as posições nazistas no Vale do pó." meu pai afixou um
mapa da Europa na parede e nele íamos seguindo os movimentos das tropas. A
imaginação corria rapidamente e eu me sentia como um soldado na frente de
batalha. O mapa, os países, o nome das cidades, dos rios, das montanhas - tudo
estava vivo para mim.
Conto essas coisas da minha vida de menino para dizer que as
crianças são curiosas naturalmente e têm o desejo de aprender. O
seu interesse natural desaparece quando, nas escolas, a sua curiosidade é
sufocada pelos programas impostos pela burocracia governamental.
Pela minha vida tenho estado à procura da escola que daria asas à curiosidade
do menino que fui. Pois, de repente, sem que eu esperasse, eu me encontrei com
a escola dos meus sonhos. E me apaixonei.
Novas Formas de ver
Tudo começou em 2000, via internet. Um desconhecido de Portugal,
Ademar Ferreira dos santos. Uma brasileira lhe havia dado um livrinho meu, Estórias
de Quem Gosta de Ensinar. Ele gostou. Sem nos conhecermos pessoalmente, nos
descobrimos amigos. Ele me convidou para ir a Portugal e falar aos professores
da universidade de Braga e adolescentes de uma escola secundária.
Fui e fiz. Foi bom. Aí, numa manha, ele me disse: "vou
levar-te a conhecer uma escola diferente.""Diferente como?",
perguntei. "Não é possível dizer-te. tu verás." chegamos à escola. Na
sua frente havia um pátio arborizado. Lá estava o diretor, professor José
Pacheco. Mais tarde, aprendi que ele se recusa a ser chamado de diretor, por razões
que explicarei mais tarde.
Minha expectativa era que o diretor, por um mínimo dever de
cortesia, haveria de levar-me a conhecer a escola. Homem de poucas palavras,
trocamos meia dúzia de banalidades. Vinha passando à nossa frente uma menina de
uns 9 anos. Ele a chamou e disse: "Tu podes mostrar e explicar a nossa
escola ao nosso visitante?" "Pois, pois", respondeu a menina,
sem mostrar nenhuma surpresa. Ato contínuo, ele me abandonou e fiquei eu à
mercê da menina.
Os primeiros sustos
Eu nunca tinha tido experiência que um diretor entregasse a uma
aluna, menina de 9 anos, a tarefa de mostrar e explicar a sua escola a um
educador estrangeiro.
A menina não se fez de rogada. Encaminhou-se resolutamente na
direção da porta da escola e eu, obedientemente, a segui. Chegando à porta, ela
parou, voltou-se para mim e disse em voz resoluta e confiante: "para
entender a nossa escola, o senhor terá de se esquecer de tudo o que o senhor
sabe sobre escolas. Não temos turmas, não temos alunos
separados por classes, nossos professores não dão aulas com giz e lousa, não
temos campainhas separando o tempo, não temos provas e notas."
Foi o segundo susto. As palavras da menina produziram um vazio na
minha cabeça. Porque as escolas que conheço, mesmo as mais experimentais e
avançadas, têm professores dando aulas, têm turmas, têm salas de aula que
separam as crianças, têm provas e testes, têm notas e boletins para o controle
dos pais.
Professores aprendizes
Perguntei: "E como é que vocês aprendem ?” “Ela me respondeu:
“Formamos um pequeno grupo de seis pessoas em torno de um tema de
interesse comum. Convidamos um professor para
ser nosso assessor. Ele nos ajuda com informações
bibliográficas e de internet. Estabelecemos, de comum acordo, um programa de
trabalho de duas semanas. Durante esse tempo, lemos e pesquisamos. Ao cabo de
duas semanas, nos reunimos para avaliar o que aprendemos e o que deixamos de
aprender.”
"Percebi logo que naquela escola não podia haver
livros-texto. Livros-texto são onde se encontram os saberes que, por escolha e
determinação de uma instância burocrática superior, devem ser aprendidos pelos
alunos. O conjunto desses saberes se denomina "programa". Mas
acontece que a curiosidade não segue os caminhos determinados pela burocracia.
Sem livros-texto, as crianças têm de aprender a procurar os
saberes necessários à compreensão do "tema de interesse comum". E
os professores deixam de ser aqueles que sabem os saberes prescritos pelos
programas. Eles se encontram permanentemente em suspenso ante o inesperado dos
interesses das crianças. Os professores não são aqueles que sabem os saberes.
São aqueles que sabem encontrar caminhos para os saberes. de qualquer forma, os
saberes já se encontram em livros, bibliotecas, enciclopédias, internet.
Acresce-se a isso o fato de que, hoje, os saberes se tornam
rapidamente obsoletos.
Se os alunos tiverem os mapas e souberem encontrar o caminho, eles
terão sempre condições de descobrir o que sua curiosidade pede. E os
professores, por não saberem de antemão o que as crianças querem saber, têm de
se tornar aprendizes junto às crianças. O tal "programa de trabalho de
duas semanas", de que falou a menina, era para os professores também. Eles
ensinam o aprender aprendendo junto. O que é muito mais divertido do que ficar,
todos os anos, repetindo os mesmos saberes imobilizados pelos programas. Ficar
a repetir o que se sabe, ano após ano, é, sem dúvida, uma prática emburrecedora.
Dentro da escola
Andamos um pouco e a menina abriu a porta da escola. Era uma
grande sala, com muitas mesinhas, crianças pequenas, crianças grandes, algumas
com síndrome de Down, todas juntas no mesmo espaço. Cada uma fazendo a sua
coisa. Estantes com livros. Vários computadores. Algumas crianças lendo ou
escrevendo. Outras consultando livros e a internet. Algumas professoras
assentadas às mesinhas junto das crianças. Ninguém falava alto. Só sussurros. E
ouvia-se, baixinho, música clássica.
Numa parede, em letras grandes, estavam várias frases relativas ao
descobrimento do Brasil. Era o ano em que se comemoravam os cinco séculos da
descoberta. "Que são essas frases?", perguntei. "Os miúdos
[crianças] estão a aprender a ler. aqui não aprendemos nem letras, nem sílabas.
Só aprendemos totalidades.
Mas temos de aprender a ordem alfabética para consultar o dicionário." Outro
susto: aprender a consultar o dicionário tão cedo?
Mistérios do dicionário
Ao nosso lado havia uma delas consultava um dicionário.
Ajoelhei-me ao seu lado, para que nossos olhos estivessem no mesmo nível, e
perguntei: "Tu estás a consultar o dicionário?" "Sim", ela
me respondeu. "Procuras uma palavra que não conheces?" "Não,
conheço a palavra." Eu não entendi e perguntei de novo: "Mas se
conheces a palavra por que a procuras no dicionário?" Aí ela me deu uma
resposta que me produziu outro susto. "É que estou a produzir um texto
para os miúdos e usei uma palavra que, creio, eles não conhecem. Estou, assim,
a preparar um pequeno dicionário que colocarei ao pé da página do meu texto
para que entendam o que escrevi, posto que ainda não podem consultar o dicionário
por não haverem ainda aprendido a ordem alfabética."
Fiquei assombrado. Aquela menina tinha clara consciência dos
limites dos conhecimentos dos "miúdos". ela escrevia pensando neles.
Naquela idade, já era uma educadora.
Os quadros de ajuda
Para que aquela menina estivesse escrevendo um texto para as
crianças era preciso que não houvesse paredes separando-a dos
"miúdos", que eles ocupassem o mesmo espaço e existisse entre eles
relações de comunicação, confiança e responsabilidade. O texto que ela escrevia
não fora um "dever" que a professora lhe passara. Ela o escrevia a
pedido dos alunos mais novos.
Essa rede livre de comunicação, responsabilidade e ajuda estava
silenciosamente exibida em dois quadros afixados na parede. Num
deles estava escrito preciso que me ajudem em, no outro, posso ajudar
em. Qualquer aluno que esteja com um problema, antes de procurar a
professora, escreve o seu pedido no primeiro quadro: "Preciso que me
ajudem em regra de três", e assina o nome, Fátima, por exemplo. Aí, o
Sérgio, passando pelo quadro, vê a mensagem da Fátima e pensa: "A Fátima
não sabe regra de três. Eu sei. Vou ajudá-la." E isso acontece
naturalmente, é parte do cotidiano da escola. Não é preciso pedir licença à
professora e nem há hora certa para se fazer isso.
O segundo quadro é o contrário: quando um aluno se sente
competente em um saber, ele o anuncia aos colegas e se coloca à disposição. A
capacidade de ensinar um saber a alguém vale por uma avaliação. E
é o aluno quem a faz. É ele que se sente competente. Assim vão eles praticando
as virtudes de ensinar, de aprender e de se ajudarem uns aos outros.
O grande tribunal
Eu me encontrava num estado de acontecendo? Ninguém falando alto,
nenhuma professora pedindo silêncio, todos trabalhando, a música clássica.
Aquilo não podia ser toda a verdade. Deveria haver algo mais. Perguntei à
menina: "Mas vocês não têm alunos agressivos, indisciplinados, que gritam
e perturbam a ordem?" "Temos. Mas para isso temos o tribunal de
alunos. Quando um menino ou uma menina se comporta de maneira a
perturbar a ordem nos termos que nós mesmos estabelecemos, o tribunal entra em
ação e providências disciplinares são tomadas."
"Que coisa maravilhosa", eu pensei. Uma escola onde os
professores não são responsáveis pela disciplina. E nem o diretor é a instância
punitiva última, para onde são enviados os desordeiros. É a comunidade das
crianças que cuida disso. Professores e diretor podem, assim, se dedicar aos
desafios prazerosos de aprender junto com os alunos.
O último julgamento
Voltei à Escola da Ponte em 2001. Perguntei sobre o tribunal. O
professor José Pacheco contou-me que o tribunal não existia mais. Fora abolido
pela assembléia. Percebeu-se que ele era uma instância de punição e não de
recuperação. E passou a relatar-me o incidente que produzira a sua dissolução.
Um aluno violento fora levado ao tribunal para responder por uma
agressão. A assembléia da escola nomeou, como de praxe, um advogado de
acusação. O réu escolheu um colega para defendê-lo. A assembléia se reuniu para
o julgamento.
"A acusação foi devastadora", disse-me o professor José
Pacheco. "Reuniu as provas e estabeleceu de forma cabal a culpa do réu. Eu
pensei: ele está perdido, não há saída. entrou em ação o advogado de defesa.
Ele não negou o que fora apresentado pela acusação, nem apresentou fatos que
minimizassem a culpa do réu, mas lembrou aos membros do tribunal que todos eles
eram Cristãos, freqüentavam a missa e o catecismo. E que, na igreja, se
ensinava que o amor nos leva a ajudar aqueles que estão em dificuldades.
Concluiu: `Pois esse colega tem estado em dificuldades há muito tempo e
todos sabíamos disso. E agora estamos prontos a puni-lo. antes que o tribunal
dê a sentença, e em nome da nossa coerência, quero que respondamos o que
fizemos para ajudá-lo.'"
Esse foi o fim do tribunal. No seu lugar estabeleceu-se uma
comissão de ajuda. Hoje, na escola da ponte, quando algum aluno começa a
apresentar problemas de comportamento, essa comissão se adianta e nomeia
colegas para ajudá-lo, com a missão de estar sempre por perto do dito aluno. E,
quando se percebe que ele vai fazer algo inadequado, os colegas entram em ação
para tentar dissuadi-lo.
O direito à alegria
A menina continuou a me guiar. Chegamos a uma mesa
onde estava trabalhando uma aluna com síndrome de Down. Vi garota e pensei
sobre sua convivência mansa com os seus colegas. Senti que sua presença ali era
algo normal e feliz na rede de relação de solidariedade e de aprendizado que
constitui a escola. Aquela menina era parte dessa rede. Com algumas
peculiaridades e limitações, é claro. Mas, como todos os outros, ela se
dedicava a aprender.
Se me perguntarem se ela conseguia seguir o programa, eu
responderia dizendo que não há um programa a ser
seguido numa ordem certa e num mesmo ritmo. Cada criança é única, com seus
próprios sonhos, ritmos e interesses.
A escola não pode destruir essa criança para amoldá-la a uma "forma".
O objetivo da escola é criar um
espaço em que cada criança possa pensar os seus sonhos e realizar aquilo que
lhe é possível, no ritmo que lhe é possível.
Pensei que, nas escolas da minha memória, é comum que a preocupação dominante
dos professores seja dar o programa. É isso que a administração pede deles. Não
é incomum que professores, em conversas, falem em que lugar da "corrida"
dos programas eles se encontram. É compreensível. Como
partes da máquina burocrática, eles perderam a liberdade
e se esqueceram dos sonhos antigos.
A educação não tem como objetivo preparar os alunos para
ingressar no mercado de trabalho. O
objetivo é criar as condições possíveis para a experiência da alegria.
Porque é para isso que vivemos. A escola deve ser um espaço em que isso
acontece. Parte das potencialidades daquela menininha tem a ver com saber viver
no mundo dos ditos "normais". E parte das potencialidades das
crianças ditas "normais" tem a ver com saber conviver com crianças
diferentes - e ajudá-las. Isso também é alegria. Esse aprendizado de solidariedade
é mais importante do que qualquer conteúdo de programa.
Cada aluno é único
Pensei: o que são programas? Programas
são uma organização lógica de saberes dispostos numa ordem linear e que devem
ser aprendidos numa velocidade igual, como se todos estivessem numa linha de
montagem de uma fábrica.
Sobre que pressupostos se constroem os programas?
Bem, o primeiro costuma ser mais ou menos assim: "A aprendizagem se dá
numa relação entre o saber, abstratamente definido, e a inteligência da
criança. A mediação entre saberes e inteligência se dá pela didática. Se a
aprendizagem não acontece, o problema se encontra ou na inteligência deficiente
da criança ou numa didática inadequada."
Um segundo pressuposto prega que "todas as crianças são iguais".
É só isso o que justifica que os mesmos saberes sejam dados a todas as
crianças. mas isso é patentemente falso. os sonhos das crianças das praias de
alagoas, das montanhas de minas gerais, da Amazônia, das favelas, dos
condomínios ricos não são os mesmos. então, qual é o sentido instrumental dos
saberes abstratos igualmente prescritos a todas as crianças pelos programas?
Não admira que sejam logo esquecidos. Só
realmente aprendemos aquilo que usamos.
"Todas as crianças têm o mesmo ritmo. Por isso as crianças
têm de aprender no ritmo em que as aulas são dadas." Ah, o ritmo das
aulas. Toca a campainha, é hora de pensar português. Toca a campainha, é hora
de parar de pensar português e começar a pensar matemática. Toca a campainha, é
hora de parar de pensar matemática e começar a pensar geografia. E assim por
diante. O ritmo e a fragmentação das aulas
estão em completo desacordo com tudo o que sabemos sobre o processo de
pensamento. Não é possível dar ordens ao pensamento para que ele pare de pensar
numa coisa numa certa hora e comece a pensar em outra.
Mas há ainda um quarto pressuposto: "A
avaliação da aprendizagem se faz por meio de provas e testes e os seus
resultados são expressos em números." Confesso ainda não ter compreendido
a função pedagógica desse procedimento.
Sobre isso há muito a ser escrito.
Grandes horizontes
Na Escola da Ponte não há programas. Isso não quer dizer que a
aprendizagem aconteça ao sabor dos desejos das crianças. Imagine um homem do
campo, que só conheça as comidas mais simples: polenta, feijão, abobrinha,
picadinho de carne. Imagine que ele venha à cidade e seja levado por um amigo a
um restaurante. "Que é que o senhor deseja?", lhe perguntaria o
garçom. Ele certamente responderia falando de polenta, feijão, abobrinha,
picadinho de carne, pois esse é o seu repertório de pratos. Aí, o amigo lhe
diria: "Quero sugerir que você experimente uns pratos diferentes."
Assim acontece na relação entre professores e alunos. Os
professores sabem mais. É por isso que são professores. E uma de suas tarefas é
"seduzir" as crianças para coisas
que elas ainda não experimentaram. Eles lhes apontam coisas que nunca viram e
as introduzem num mundo desconhecido de arte, literatura, música, natureza,
lugares, história, costumes, ciências, matemática. "A primeira
tarefa da educação é ensinar a ver", dizia o filósofo Nietzsche.
Não é obrigatório que elas gostem do que vêem. Mas é importante que seus
horizontes se alarguem.
O direito de não ler
O dia na Escola da Ponte se inicia de uma forma inusitada. Cada
criança se assenta onde quer e escreve numa folha de caderno o seu plano de
trabalho para aquele dia. Esse plano de trabalho está ligado ao seu projeto de
investigação. Ao final do dia, comparando o realizado com o planejado, ela
poderá avaliar o quanto caminhou. Eu imagino que deveria ser mais ou menos
assim que o trabalho acontecia nas oficinas artesanais e de arte do
renascimento: os aprendizes trabalhavam num projeto artesanal, ou de escultura,
pintura, e, vez por outra, o mestre aparecia para
avaliar, corrigir, sugerir.
Andando na Escola da Ponte, encontro um cartaz cujo título era: Direitos
e Deveres das crianças em relação aos livros. O primeiro direito me deu um
susto tão grande que nem li os outros. Foi susto por ser inesperado. Mas foi um
susto bom. Até ri. Dizia assim: "Toda criança tem
o direito de não ler o livro de que não gosta."
Esse direito sempre me pareceu óbvio. Mas eu nunca o havia visto assim escrito
de forma clara, numa escola, para que os alunos o lessem. As escolas da minha
memória jamais fariam isso. Porque é parte do seu dever burocrático fazer com
que as crianças leiam os livros de que não gostam.
Há professores que ensinam literatura para desenvolver uma postura
crítica nos seus alunos. Mas esse não é o objetivo da literatura. Lê-se
pelo prazer de ler. Por isso, refugo quando pessoas falam
sobre a importância de desenvolver o hábito de leitura. Isso é o mesmo que
dizer que é preciso desenvolver nos maridos o hábito de beijar a mulher.
Hábitos são comportamentos automatizados que nada têm a ver com prazer. Lê-se
pela mesma razão que se dá um beijo amoroso: porque é deleitoso, porque dá
prazer ao corpo e alegria à alma.
As duas caixas
Já resumi minha teoria de
educação dizendo que o corpo carrega duas caixas. Uma delas é a "caixa de
ferramentas", onde se encontram todos os
saberes instrumentais, que nos ajudam a fazer coisas. Esses
saberes nos dão os "meios para viver". Mas há também uma "caixa
de brinquedos". Brinquedos não são ferramentas. Não servem para nada.
Brincamos porque o brincar nos dá prazer. É nessa caixa que se encontram a
poesia, a literatura, a pintura, os jogos amorosos, a contemplação da natureza.
Esses saberes, que para nada servem, nos dão "razões para viver".
A "caixa de ferramentas" guarda muitos livros: manuais,
listas telefônicas, livros de ciências. Na "caixa de brinquedos"
estão os livros de literatura e poesia que devem ser lidos pelo prazer que nos
dão. Obrigar uma criança ou um adolescente a ler um livro de que não
gosta só tem um resultado: desenvolver
o ódio pela leitura. É o que acontece com os jovens que,
preparando-se para o vestibular, são obrigados a ler os
"resumos". A receita certa para destruir o prazer da leitura é colocar um teste ao seu
final para avaliar o aprendido. Ou pedir que se faça um fichamento do livro
lido.
Leis e direitos
Numa parede da escola se encontravam as "leis". Mais importante
que as leis era o fato de que elas tinham sido sugeridas e aprovadas pela
assembléia de alunos. Aquele documento representava a vontade coletiva de
crianças, professores e funcionários. Era o seu "pacto social" de
convivência. Lembro-me de alguns itens. "Todas as pessoas têm o direito de
dizer o que pensam sem medo." "Ninguém pode ser interrompido quando
está falando." "Não se deve arrastar as cadeiras fazendo
barulho."
O item que mais me comoveu e que é revelador da alma daquelas
crianças foi esse: "Temos o direito de ouvir música
enquanto trabalhamos, para pensar em silêncio."
Entendi, então, a razão da música clássica que se ouvia baixinho.
Acho bem e acho mau
Ao final da minha caminhada inaugural pela Escola da Ponte, a
menina me indicou um computador. "Nesse computador se encontram dois
arquivos", ela explicou. "Um se chama acho bem, o outro, acho
mal." Qualquer pessoa pode usar o computador para comunicar aos outros o
que acha bem e o que acha mal. Um ninho de passarinho num galho de árvore, um
ato do presidente da república, o aniversário de um colega, um livro divertido
- tudo isso pode estar no acho bem. No acho mal, eu encontrei: "Acho mal
que o Fernando fique a dar estalos na cara da Marcela." pensei logo:
"Esse é candidato ao tribunal..."
As crianças haviam aprendido que há palavras grosseiras, chulas,
que não devem ser usadas. No seu lugar usam-se outras palavras sinônimas. É o
caso do verbo "cagar", que não deve ser usado em situação alguma. Mas
pode-se usar o sinônimo "defecar" que, sem ser elegante, pelo menos
não ofende. Pois uma menina escreveu: "Acho mal que os meninos vão a
defecar na privada e deixem a tampa toda cagada." Menina genial! Ela sabia
que o dicionário estava errado. Cagar e defecar não são palavras sinônimas,
muito embora o dicionário assim o declare. Se ela tivesse escrito "Acho
mal que os meninos vão a defecar na privada e deixem a tampa toda
defecada", sua indignação teria perdido toda a força literária. Porque
aquilo que os meninos faziam na tampa da privada não era defecar; era
"cagar" mesmo, uma coisa chula e grosseira.
O todo e as partes
A menina já me havia informado do princípio central da pedagogia
da Escola da Ponte, ao me explicar como os miúdos aprendiam a ler: "Aqui
não aprendemos nem letras e nem sílabas. Só aprendemos
totalidades." As disciplinas isoladas
são o resultado da tendência de análise e especialização que caracterizam o
desenvolvimento das ciências ocidentais. A nona sinfonia, de Beethoven, não é o
conjunto de suas notas. Ela não se inicia
com notas e acordes. A totalidade vem primeiro e é só em relação a
ela que as partes têm sentido. Assim é o corpo: uma entidade musical. Nenhuma
de suas partes tem sentido em si mesma. É a melodia central do corpo que faz as
partes dançarem. Mas os nossos jovens, diante do vestibular - e é preciso não
esquecer que os programas das escolas se orientam no sentido de preparar para o
vestibular -, trazem consigo as partes desmembradas de um corpo morto: uma soma
enorme de informações que não formam um todo significativo. Física, química,
biologia, história, geografia, literatura, como se relacionam? Fazem-se então
esforços inúteis de interdisciplinaridade.
Inúteis porque o todo não se constrói juntando-se as partes.
Brincar é coisa séria
A Escola da Ponte me mostrou um novo mundo em que
crianças e adultos convivem como amigos na fascinante experiência de descoberta
do mundo. Aprender é muito divertido. Cada objeto a ser aprendido é um
brinquedo. Pensar é brincar com as coisas. Brincar é coisa séria. Assim, brincar
é a coisa séria que é divertida.
Quando falo que me apaixonei pela Escola da Ponte, estou dizendo
que amo aquelas crianças. Gosto delas. e elas também gostam de mim. Voltar à
Escola da Ponte já está se tornando rotina. Quando lá chego, sou afogado por
centenas de "beijinhos". Comove-me a amizade daquelas crianças. Sinto
que o maior prêmio para um professor é quando os alunos se tornam amigos dele.
Um verdadeiro professor nunca sofre de solidão.
Uma entrevistadora brasileira perguntou a uma menina: "Quem é
Rubem Alves?" a menina respondeu: "É um velhinho que conta
estórias." As crianças podem me chamar de velhinho. Não me importo. Mas
somente elas.
*Rubem Alves é escritor, autor de dezenas de livros, entre eles A
Escola com que Sempre Sonhei sem Imaginar que Pudesse Existir (Papirus, 120
págs., r$ 22), em que conta sua experiência na Escola da Ponte. Rubem Alves
será um dos palestrantes do VII Congresso e Feira de Educação saber 2003, que
acontece de 11 a 13 de setembro, no palácio das convenções do Anhembi, em São
Paulo. Mais informações no site www.saber2003.com.br**os
www.saber2003.com.br**os azulejos que ilustram esta matéria foram século XX
(edições Inapa, 280 págs.) Leia a matéria na íntegra www.revistaeducacao.com.br/r_alves.php
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