sexta-feira, 13 de junho de 2014




Vicío

Machado de Assis
Eras pálida.
E os cabelos,
Aéreos, soltos novelos,
Sobre as espáduas caíam
Os olhos meio-cerrados
De volúpia e de ternura
Entre lágrimas luziam
E os braços entrelaçados,
Como cingindo a ventura,
Ao teu seio me cingiram
Depois, naquele delírio,
Suave, doce martírio
De pouquíssimos instantes
Os teus lábios sequiosos,
Frios trêmulos, trocavam
Os beijos mais delirantes,
 E no supremo dos gozos
Ante os anjos se casavam
Nossas almas palpitantes
Depois a verdade,
 A fria realidade,
 A solidão, a tristeza;
Daquele sonho  desperto,
Olhei... silêncio de morte
Respirava a natureza
— Era a terra, era o deserto,
Fora-se o doce transporte,
Restava a fria certeza.
 Desfizera-se a mentira:
Tudo aos meus olhos fugira;
 Tu e o teu olhar ardente,
 Lábios trêmulos e frios,
O abraço longo e apertado,
 O beijo doce e veemente;
Restavam meus desvarios,
E o incessante cuidado,
E a fantasia doente.
E agora te vejo.
E fria
Tão outra estás da que eu via
Naquele sonho encantado!
 És outra, calma, discreta,
Com o olhar indiferente,
Tão outro do olhar sonhado,
Que a minha alma de poeta
Não vê se a imagem presente
Foi a imagem do passado.
Foi, sim, mas visão apenas;
Daquelas visões amenas
Que à mente dos infelizes
Descem vivas e animadas,
Cheias de luz e esperança
 E de celestes matizes:
Mas, apenas dissipadas,
 Fica uma leve lembrança,
Não ficam outras raízes.
 Inda assim, embora sonho,
 Mas sonho doce e risonho,
Desse-me Deus que fingida
Tivesse aquela ventura
Noite por noite, hora a hora, 
No que me resta de vida,
Que, já livre da amargura,
 Alma, que em dores me chora,
Chorara de agradecida!

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