04.TEXTO: ANÚNCIOS SUTIS COMO ELEFANTES
Não tenho boa memória para publicidade. E seria muito
neurótico de minha parte ficar na frente da TV anotando o texto exato do
anúncio só para comentar depois. Não sei se era de um banco, de um
provedor de internet ou de companhia telefônica.
Só sei que aparecia um tipo em trajes de banho, numa
espreguiçadeira, curtindo sua piscininha. Ao lado, a namorada de maiô. O
locutor começa: “Que tal se você mudasse de namorada... arranjasse uma
mais simpática, mais bonita, mais interessante... etc.” E, num truque de
computador, surge uma loiraça de biquíni contorcendo-se na frente do
rapaz. Irresistível. Espetacular. O carinha se interessa.
“Ah, não”, brinca o locutor. Você não vai abandonar a sua
namorada, não é? Puf, a loira some e o rapaz volta à situação de início.
Que decepção. “Mas você pode”, festeja o locutor, “mudar de banco ou de
seguradora! E a nossa empresa é tão espetacular quanto a loira
desaparecida.
Fico chocado. Não quero ser moralista demais. O escandaloso
do anúncio não é que se faça o elogio do adultério. O que faz de pior é
tratar a situação “normal” do personagem – muito feliz ali com a
namorada, que nada tinha feito de errado – como sinal de perda, de
fracasso, de burrice.
É como se o anúncio dissesse: meu poder é tão grande, as
tentações que manipulo são tão poderosas, que eu sei e você sabe que o
certo é largar tudo e ir correndo atrás delas.
O seu desinteresse pelos meus serviços – sua fidelidade, seu
amor pela namorada – são pura hipocrisia. Muito bem, estou dando uma
chance a você de provar para mim que não é otário nem hipócrita: afogue
sua namorada na piscina, delete-a da memória e assine aqui este
contrato. A pessoa que está do seu lado, sabemos, é apenas uma
fornecedora de serviços não muito satisfatória se comparada à loiraça
que, agora, você teme perder.
A brutalidade desse anúncio de alguma forma se autodenuncia.
Quanto mais vejo TV, mais dificuldade tenho em dissociar publicidade de
prostituição. Mas o cliente poderia ao menos ter a ilusão de que gostam
mesmo dele. Já estão me tirando isso. Penso em outro anúncio.
O pai aparece dirigindo um carro, com a filha adolescente no
banco de trás. Ela vai logo dizendo: “Pode parar, fico aqui mesmo, não
precisa me levar até a porta”. A situação se repete com outro
adolescente. Claro, pensamos, filhos dessa idade têm vergonha de serem
vistos junto com os pais.
Mas não era isso. Um terceiro menino, de uns 11 anos, faz
questão do contrário. Quer que o pai o deixe bem na porta do cinema,
onde será visto pelos amigos. A câmera se afasta, e vemos a razão. É que
o pai do menino tem um carro da marca X... e o garoto quer exibi-lo
diante dos coleguinhas.
Conclusão do amável locutor (será o mesmo?): não é que seus
filhos tenham vergonha de você. Eles têm vergonha é do seu carro.
Mas como o locutor sabe qual é o meu carro? A minha namorada,
tudo bem, ele e eu já concordamos que é fraquinha, devendo ser
dispensada sem aviso prévio. Mas o meu carro?
A conclusão do anúncio, claro, é diversa daquela apresentada.
Quando eu comprar o carro indicado, poderei levar meus filhos até a
porta do cinema ou da festinha. Não é que meus filhos devam ter orgulho
de mim: eles devem ter orgulho é do meu carro.
Que valores, hein? Num ambiente desses, dizer que Bush
“defende” os “valores ocidentais” no Iraque – democracia, liberdade,
direitos humanos – não soa muito convincente. Os verdadeiros valores
ocidentais, por aqui, parecem ser outros.
Por falar em Ocidente e em carros, cito um último anúncio,
mais sutil. Vale como símbolo, sem dúvida autoconsciente, da comédia da
globalização e do colapso das economias nacionais do Terceiro Mundo.
Estamos na Índia ou no Paquistão, tanto faz. Um rapaz
“étnico” tem um carrinho da década de 60, todo quadrado, não sei de que
marca – alguma fábrica local já extinta.
Pega o carro, bate contra um muro, amassa-o de todos os
lados, a até convoca um elefante para sentar-se no capô. (Na Índia, há
elefantes por toda parte, e talvez isso atrapalhe muito o trânsito. Por
isso mesmo, quero um motor mais potente.) Em todo o caso, o elefante fez
um bom serviço. Ajuda a tornar o carro um pouco mais arredondado, do
jeito que o indiano queria.
Sim, pois o que nosso mísero nativo desejava era tornar seu
carrinho o mais parecido possível com o novo modelo da marca Y, um
prodígio do design arredondado. E eis agora o indiano na porta de uma
boate, tentando fazer sucesso com a prensagem elefantina do seu velho
modelo. Será que foi buscar o filho?
Mas eles continuam tendo filhos lá na Índia?
E continuam fazendo carros? Melhor importar logo um de fora. E também a loiraça.
(Marcelo Coelho. Folha de S.Paulo, 9/4/2010)
ESTUDO DO TEXTOO texto lido foi publicado numa coluna semanal do jornalista Marcelo Coelho.
1.Como você classificaria o texto quanto ao gênero: como relato pessoal, notícia, texto de opinião ou conto?É um texto de opinião, pois leva o leitor a assumir o mesmo ponto de vista do autor.
2. Indique, entre os itens a seguir, o que traduz melhor a finalidade principal do texto.
a) ( ) Ensinar a um público especializado como fazer anúncios publicitários.
b) (x ) Analisar anúncios publicitários a fim de levar o leitor a refletir criticamente sobre os valores transmitidos por eles.
c) ( ) Promover comercialmente três produtos diferentes.
d) ( ) Analisar, com finalidade didática, o modo como são construídos os anúncios publicitários.
3)Três anúncios são comentados no texto. Em relação ao primeiro anúncio, o autor afirma: “Não quero ser moralista demais”.
a) Por essa afirmação, o autor admite estar sendo moralista? Por quê?
Sim, porque não apenas por cultuar o adultério, mas sim o fato de achar normal.
b)Por que o anúncio e o comentário dele supostamente envolveriam uma questão moral?
Pela falta de respeito aos sentimentos das pessoas que não são levados em conta.
4) O último anúncio comentado mostra uma situação, na Índia ou no Paquistão, em que um rapaz “étnico” modifica as formas de seu carro.
a) O que você entende por rapaz “étnico”?
Um rapaz que respeita a cultura de seu povo.
b) As ações do rapaz são condizentes com as tradições de seu país? Por quê?
Sim, pois em seu país há elefantes por toda parte, e o mesmo ajudou a deixar seu carro mais arredondado como queria.
5) Segundo o autor, o terceiro anúncio é um símbolo da “comédia da globalização e do colapso das economias nacionais do Terceiro Mundo”. Explique essa afirmação.
O texto fala em um mísero nativo, subentende que o mesmo não tem muitas condições financeiras para importar um carro, sendo a burocracia dificulta e aumenta os preços dos carros.
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