Professores & professauros
Celso Antunes
Que
se imagine uma outra galáxia e, nesta, um planeta habitado. Com
civilização bem mais antiga que a da Terra, apresenta progresso material
e moral bem mais avançado que o nosso. Nesse planeta, um pesquisador
resolve conhecer um pouco sobre como se desenvolve a educação em um
outro mundo habitado, agora bem mais atrasado, e que se chama Terra.
Valendo-se da notável tecnologia que sua avançada cultura alcançou,
disfarça-se em estudante terráqueo e, após muitas aulas que observa,
prepara seu relatório, destacando que no planeta visitado encontrou dois
tipos de ensinantes que, trabalhando com as mesmas dificuldades e
regalias no mesmo espaço, apresentam significativas diferenças entre si.
Para diferenciar profissionais assim tão díspares, chama o primeiro de
"professores" e os outros de "professauros", por identificar, nestes
últimos, formas de pensamento comuns ao período Cretáceo, dominado pelos
grandes dinossauros. Segue, extraído desse original relatório, algumas
diferenças essenciais entre os dois.
Quanto ao ano letivo que se inicia:
Para
os professores, uma oportunidade ímpar de aprender e crescer, um
momento mágico de revisão crítica e decisões corajosas; para os
professauros, o angustiante retorno a uma rotina odiosa, o eterno
repetir amanhã tudo quanto de certo e de errado se fez ontem.
Quanto aos alunos que acolhem:
Para
os professores, a alegria de percebê-los cada vez mais sabidos e
curiosos e a vontade de fazê-los efetivos protagonistas das aulas que
ministrarão. A certeza de que não os ensinarão, mas poderão contribuir
de forma decisiva para iluminar suas inteligências e afiar suas muitas
competências. Para os professauros, nada mais que chatíssimos clientes
que transformados em espectadores pensarão sempre mais na indisciplina
que na aprendizagem, na vagabundice que no crescimento interior.
Quanto às aulas que deverão ministrar:
Para
os professores, um momento especial para propor novas situações de
aprendizagens pesquisadas e através das mesmas provocar reflexões,
despertar argumentações, estimular competências e habilidades; para os
professauros, nada além que a repetitividade de informações que estão
nos livros e apostilas e a solicitação de esforço agudo das memórias
para acolher o que se transmite, ainda que sem qualquer significação e
poder de contextualização ao mundo em que se vive.
Quanto aos saberes que se trabalhará:
Para
os professores, um volume de informações que necessitará ser
transformado em conhecimentos, uma série de veículos para que com eles
se aprenda a pensar, criar, imaginar e viver; para os professauros,
trechos cansativos de programas estáticos que precisam ser ditos, ainda
que não se saiba por que fazê-lo.
Quanto à vida que se vive e os sonhos que se acalanta:
Para os
professores, desafios a superar, esperanças a aguardar, conhecimentos
para cada vez mais se aprender, a fim de se fazer da arte de amar o
segredo do viver; para os professauros, a rotina de se trabalhar por
imposição, casar por obrigação, fazer filhos por tradição,
empanturrar-se para depressa se aposentar e quanto antes morrer.
O
relatório do pesquisador espacial prossegue, mas não é objetivo desta
crônica pelo mesmo avançar. O que com a mesma, efetivamente, se pretende
são duas singelas interrogações. Você descobre em colegas que conhece
quem pertence a uma e a outra categoria? E você, prezado amigo ou amiga,
com sinceridade, a que categoria pertence?
Nem todos os dinossauros estão extintos!
Mal
entrou na sala e já foi tratando de deixar as coisas às claras: - Vamos
lá, pessoal. Uma carteira atrás da outra, bem enfileirada. Isso mesmo.
Você aí, Henrique, não ouviu? Já escutou talar em "ordem unida?" E isso
aí, todas enfileiradas, direitinho. Comigo não existe isso de carteiras
bagunçadas, esparramadas de qualquer maneira pela sala. Muito bem, agora
tratem de deixar sobre a carteira todo material que precisam usar em
aula, mas somente o material que vai ser usado. Sem excesso e sem falta.
Portanto, canetas de três cores diferentes, lápis, régua, borracha,
caderno, livro. Beleza, pessoal. A aula não pode começar se as carteiras
não estão organizadas. Cada coisa em seu lugar; estejam atentos porque
vou percorrer carteiras, uma a uma, e fiscalizar tudo.
-
Bem, turma. Agora que a classe já não mais está em bagunça e agora que
as carteiras estão arrumadas como devem ser arrumadas. prestem atenção, a
aula vai começar. Vou dividir a matéria em partes e explicar cada uma
delas. Ouçam, pensem, reflitam e perguntem, pois assim que vocês
terminarem de perguntar será a minha vez de interrogá-los, e ai dos que
não souberem. Acertar não vale nota porque é obrigação de todo
estudante, mas errar é prova de falta de atenção e para cada erro eu
tiro um ponto.
Se
perder mais de três em uma aula só, exijo a presença do pai ou da mãe
para me ajudar na educação. Não quero choradeira no final do ano. Fui
claro?
Claríssimo. Não poderia ser maior a transparência dos recados. Tudo pronto para a aula começar...
Era
assim que se pensava "aula" há trinta anos atrás. O professor era o
centro do processo de ensino e o aluno apenas um receptor de saberes
que, aula a aula, ia acumulando. Quem não acumulava o suficiente poderia
ser corrigido com um castigo ou uma reprovação. Pena que ainda existam
aulas ministradas dessa forma. Há trinta anos não havia o celular, os
computadores
não eram o que hoje são e uma simples viagem de São Paulo a Ubatuba não
demorava menos que seis horas. Nesses trinta anos o mundo mudou, a
medicina evoluiu, a tecnologia avançou, os transportes se aceleraram.
Mas ainda existem aulas em que o professor é o centro do processo de
aprendizagem. Nem todos os dinossauros foram extintos2.
2
O
vocábulo “dinossauro” não abriga qualquer intenção pejorativa.
Refere-se a professores de “outros tempos” que, na escola atual,
insistem na prática de procedimentos comuns em uma instituição que já
não mais pode existir.
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