Por mais que atire pedras à solidão
- Escrevo para dizer que parti embora ainda aqui esteja a redigir esta carta.
É nestes momentos que a música perde o tranquilo das águas e o baterista não acerta uma no prato de choques.
A despedida nunca é um até já. A despedida é uma corda cortada a meio. Por muito que queiramos fica sempre uma marca para que um dedo só sinta essa textura magoada.
Despedimo-nos do mar quando ele está quase a tocar-nos nos pés, dizemos olá à peixeira embora fosse ela a acordar-nos com a sua corneta agarrada ao carrinho de mão. A eternidade é um caso bicudo. Ninguém pode marcar férias para daqui a trinta anos. O senhor Jaime está farto. Simplesmente farto. Podia eu transcrever um soneto de saudade de Camões para salientar esse estado de farteza. Não vale a pena desacreditar quem nunca soube dar crédito.
Vamos lá fazer as contas: a sua mulher faleceu de uma coisa ruim algures nos intestinos. O seu filho do meio fora levado por um automóvel. O seu patrão disse-lhe que sim talvez mas que ainda não é certo a permanência no seu posto de trabalho. Tem cinquenta anos de aparência mas na verdade foi há trinta e oito anos que saiu de um ventre.
O tempo quando quer é mestre de erosões. Desgasta por dentro e por fora. Basta ver este homem de perto. Acho incrível a paciência de alguém que assiste desde a plantação de uma àrvore fruteira até ao amadurecimento de um fruto, para depois colhê-lo do chão.
Feitas as contas, o senhor Jaime optou pelo lado da partida. Não que vá morar para longe daqui, mas sim que vai para tão longe que nem somos capazes de lá chegar. Apenas com poesia. Mas da boa! Estamos neste pé: o senhor Jaime está de malas feitas para a morte e neste preciso momento escreve uma carta que não será carteiro a levá-la ao destinatário. A carta será deixada em cima da mesa até que venham novos moradores e percebam que ali, no espaço que irão dar nova cor, um homem sucumbiu a uma tristeza.
Entre a queda da janela e o enfrascar vinte e muitos comprimidos de uma só vez, decide-se pela primeira escolha. Apesar de não ser tão limpa, pelo menos é mais triunfante nem dá para voltar atrás. Na sua cabeça a contagem decrescente já começou. Falta só alinhar uns parágrafos na carta para que o passo seguinte seja dado rumo ao asfalto de granito.
A morte passa a ser um cálculo matemático com todas as operações somadas na sua mente. A sua herança será o fedor do seu corpo deixado aos bichos. Pelo menos haverá quem lhe dê melhor utilidade, pensa.
Não adiantemos mais na prosa e passemos ao plano da queda. A carta está escrita com palavras que se percebam à primeira. Espreita a rua e vê que depois daquela mãe que trás os filhos ao colo, ele pode-se mandar sem atrapalhar a vida dos outros. Por esta altura já devia de se ter mandado da janela abaixo. Um género de oração sobe-lhe aos olhos por um corredor do seu corpo que ele jurava não existir. Dá mais um tempo à vida. Que é um minuto ou dois para ganhar coragem. Não me responsabilizo se ele cair e não morrer. Não fui eu que fiz a história.
Eu estou aqui na minha varanda que dá de caras com a janela deste homem triste que nunca o vira antes em carne fresca. Eu relato à velocidade da tristeza deste homem que nega qualquer palavra amiga.
Penso que será agora que ele se vai. Pelo menos ele está de pé na sua janela a olhar cá para baixo a ver quando é que ninguém passa. A rua está vazia e uma oportunidade destas é uma vez na vida.
A morte piscou-lhe o olho. Inspira. Expira. O ar sabe-lhe a folhas de laranjeira. Esquisito os aromas que nos saltam do fundo. Está na hora. A velha acolá adiante que se atrase senão cai-lhe em cima.
A morte volta-lhe a sorrir. E o homem, que por mais que atire pedras à solidão, ela chega-se sempre para ele. Inspira. Expira. Doi-lhe a caixa toráxica de tanto ar pegajoso.
Vê o sol na sua extensão: madeixas de uma mulher amada. De novo o sopro de uma voz feminina a chamar-lhe por dentro do sangue.
Mais uma vez, como tantas outras vezes, sentou-se na janela e disse baixinho: hoje não!
É nestes momentos que a música perde o tranquilo das águas e o baterista não acerta uma no prato de choques.
A despedida nunca é um até já. A despedida é uma corda cortada a meio. Por muito que queiramos fica sempre uma marca para que um dedo só sinta essa textura magoada.
Despedimo-nos do mar quando ele está quase a tocar-nos nos pés, dizemos olá à peixeira embora fosse ela a acordar-nos com a sua corneta agarrada ao carrinho de mão. A eternidade é um caso bicudo. Ninguém pode marcar férias para daqui a trinta anos. O senhor Jaime está farto. Simplesmente farto. Podia eu transcrever um soneto de saudade de Camões para salientar esse estado de farteza. Não vale a pena desacreditar quem nunca soube dar crédito.
Vamos lá fazer as contas: a sua mulher faleceu de uma coisa ruim algures nos intestinos. O seu filho do meio fora levado por um automóvel. O seu patrão disse-lhe que sim talvez mas que ainda não é certo a permanência no seu posto de trabalho. Tem cinquenta anos de aparência mas na verdade foi há trinta e oito anos que saiu de um ventre.
O tempo quando quer é mestre de erosões. Desgasta por dentro e por fora. Basta ver este homem de perto. Acho incrível a paciência de alguém que assiste desde a plantação de uma àrvore fruteira até ao amadurecimento de um fruto, para depois colhê-lo do chão.
Feitas as contas, o senhor Jaime optou pelo lado da partida. Não que vá morar para longe daqui, mas sim que vai para tão longe que nem somos capazes de lá chegar. Apenas com poesia. Mas da boa! Estamos neste pé: o senhor Jaime está de malas feitas para a morte e neste preciso momento escreve uma carta que não será carteiro a levá-la ao destinatário. A carta será deixada em cima da mesa até que venham novos moradores e percebam que ali, no espaço que irão dar nova cor, um homem sucumbiu a uma tristeza.
Entre a queda da janela e o enfrascar vinte e muitos comprimidos de uma só vez, decide-se pela primeira escolha. Apesar de não ser tão limpa, pelo menos é mais triunfante nem dá para voltar atrás. Na sua cabeça a contagem decrescente já começou. Falta só alinhar uns parágrafos na carta para que o passo seguinte seja dado rumo ao asfalto de granito.
A morte passa a ser um cálculo matemático com todas as operações somadas na sua mente. A sua herança será o fedor do seu corpo deixado aos bichos. Pelo menos haverá quem lhe dê melhor utilidade, pensa.
Não adiantemos mais na prosa e passemos ao plano da queda. A carta está escrita com palavras que se percebam à primeira. Espreita a rua e vê que depois daquela mãe que trás os filhos ao colo, ele pode-se mandar sem atrapalhar a vida dos outros. Por esta altura já devia de se ter mandado da janela abaixo. Um género de oração sobe-lhe aos olhos por um corredor do seu corpo que ele jurava não existir. Dá mais um tempo à vida. Que é um minuto ou dois para ganhar coragem. Não me responsabilizo se ele cair e não morrer. Não fui eu que fiz a história.
Eu estou aqui na minha varanda que dá de caras com a janela deste homem triste que nunca o vira antes em carne fresca. Eu relato à velocidade da tristeza deste homem que nega qualquer palavra amiga.
Penso que será agora que ele se vai. Pelo menos ele está de pé na sua janela a olhar cá para baixo a ver quando é que ninguém passa. A rua está vazia e uma oportunidade destas é uma vez na vida.
A morte piscou-lhe o olho. Inspira. Expira. O ar sabe-lhe a folhas de laranjeira. Esquisito os aromas que nos saltam do fundo. Está na hora. A velha acolá adiante que se atrase senão cai-lhe em cima.
A morte volta-lhe a sorrir. E o homem, que por mais que atire pedras à solidão, ela chega-se sempre para ele. Inspira. Expira. Doi-lhe a caixa toráxica de tanto ar pegajoso.
Vê o sol na sua extensão: madeixas de uma mulher amada. De novo o sopro de uma voz feminina a chamar-lhe por dentro do sangue.
Mais uma vez, como tantas outras vezes, sentou-se na janela e disse baixinho: hoje não!
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