terça-feira, 6 de outubro de 2015




RECADO AO SENHOR 903

“Vizinho -

Quem fala aqui é o homem do 1003. Recebi outro dia, consternado, a visita do zelador, que me mostrou a carta em que o senhor reclamava contra o barulho em meu apartamento. Recebi depois a sua própria visita pessoal – devia ser meia-noite – e a sua veemente reclamação verbal. Devo dizer que estou desolado com tudo isso, e lhe dou inteira razão. O regulamento do prédio é explícito e, se não o fosse, o senhor ainda teria ao seu lado a Lei e a Polícia. Quem trabalha o dia inteiro tem direito ao repouso noturno e é impossível repousar no 903 quando há vozes, passos e músicas no 1003. Ou melhor: é impossível ao 903 dormir quando o 1003 se agita; pois como não sei o seu nome nem o senhor sabe o meu, ficamos reduzidos a ser dois números, dois números empilhados entre dezenas de outros. Eu, 1003, me limito a Leste pelo 1005, a Oeste pelo 1001, ao Sul pelo Oceano Atlântico, ao Norte pelo 1004, ao alto pelo 1103 e embaixo pelo 903 – que é o senhor. Todos esses números são comportados e silenciosos; apenas eu e o Oceano Atlântico fazemos algum ruído e funcionamos fora dos horários civis; nós dois apenas nos agitamos e bramimos ao sabor da maré, dos ventos e da lua. Prometo sinceramente adotar, depois das 22 horas, de hoje em diante, um comportamento de manso lago azul. Prometo.
Quem vier à minha casa (perdão; ao meu número) será convidado a se retirar às 21:45, e explicarei: o 903 precisa repousar das 22 às 7 pois às 8:15 deve deixar o 783 para tomar o 109 que o levará até o 527 de outra rua, onde ele trabalha na sala 305. Nossa vida, vizinho, está toda numerada; e reconheço que ela só pode ser tolerável quando um número não incomoda outro número, mas o respeita, ficando dentro dos limites de seus algarismos. Peço-lhe desculpas – e prometo silêncio.
Mas que me seja permitido sonhar com outra vida e outro mundo, em que um homem batesse à porta do outro e dissesse: "Vizinho, são três horas da manhã e ouvi música em tua casa. Aqui estou". E o outro respondesse: "Entra, vizinho, e come de meu pão e bebe de meu vinho. Aqui estamos todos a bailar e cantar, pois descobrimos que a vida é curta e a lua É BELA”.
E o homem trouxesse sua mulher, e os dois ficassem entre os amigos e amigas do vizinho entoando canções para agradecer a Deus o brilho das estrelas e o murmúrio da brisa nas árvores, e o dom da vida, e a amizade entre os humanos, e o amor e a paz”

(BRAGA, Rubem. Recado ao senhor 903. In: Para gostar de ler. Crônicas. 12 ed. São Paulo: Ática)

Após a leitura do texto, responda:

1-Você já sabe que a crônica é um gênero textual hibrido, que oscila entre a literatura e o jornalismo, resultado da visão pessoal do cronista, a crônica relata, normalmente, um fato colhido no noticiário do jornal ou no cotidiano.
Que fato desencadeou essa crônica?
 
2. O início do texto se configura sob a forma de uma carta (parágrafos 1 e 2). Já a  partir do terceiro parágrafo, percebe-se que se trata de uma crônica.sob a forma de carta, constituindo esse texto de Rubem Braga um claro exemplo de um gênero textual híbrido.
Apresente menos uma característica, presente na construção do texto, de cada gênero mencionado.

3. Ao mostrar a redução dos homens a números, o que o cronista critica?

Nas questões de 4 a 8, assinale a alternativa correta

4. Ao receber a reclamação do vizinho, o morador do 1003:

(A) alega que a Lei e a Polícia estão a favor do vizinho.
(B) critica o fato de o vizinho ter reclamado do barulho.
(C) fica desolado e reconhece que o vizinho tem razão.
(D) ignora a visita do zelador que lhe mostrava a carta.

5. Ao mencionar a possibilidade de “sonhar com outra vida e outro mundo” o narrador imagina um mundo em que todos:

(A) acordassem sempre às três horas da manhã.
 (B) ignorassem que a vida é curta e a lua é bela.
(C) pudessem viver dançando, cantando e bebendo.
(D) vivessem felizes e solidários com os semelhantes.

6. No texto, a identificação dos moradores por meio de números sugere:

(A) a relação impessoal entre vizinhos.
(B) a amizade entre vizinhos do prédio.
(C) a solidariedade entre as pessoas.
(D) a hostilidade entre os homens.
 
7. Pode-se afirmar que este texto é uma crônica e não uma carta porque:

(A) objetiva esclarecer e orientar as pessoas.
(B) procura colher informações sobre os vizinhos.
(C) trata de forma pessoal e bem humorada um fato cotidiano.
(D) visa a convencer o leitor a mudar o seu comportamento.

8. A ideia em torno da qual o texto se organiza é:

(A) a amizade existente entre os moradores.
(B)a  relação conflituosa entre vizinhos de prédios.
(C) a responsabilidade do zelador pelo silêncio.
(D) a importância dos regulamentos dos edifícios.

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