O BILHETE
Reginaldo tinha
aversão ao jogo; nem mesmo a loteria o tentava.
Entretanto, uma
tarde meteu-se num bonde do Catete, para recolher-se a casa, e no Largo do
Machado, onde se apeou, pois morava naquelas imediações, foi perseguido por um
garoto que à viva força lhe queria impingir um bilhete de loteria, – uma grande
loteria de cem contos de réis, cuja extração estava anunciada para o dia
seguinte.
Reginaldo
resistiu, caminhando apressado sem dar resposta ao garoto, que o acompanahva
insistindo; mas de repente lhe acudiu a ideia de que aquele maltrapilho poderia
ser a fortuna disfarçada. Era preciso agarrá-la pelos cabelos! Comprou o
bilhete e foi para casa onde o esperavam os tristes feijões quotidianos.
Ele bem sabia que,
se dissesse a Nhanhã que havia feito essa despesa extra-orçamentária, não teria
a sua aprovação; mas – que querem, – o pobre rapaz era um desses maridos
submissos, que não ficam em paz com a cosnciência quando nõ contam por miúdo às
caras-metades tudo quanto lhes sucede.
Ao saber da compra
do bilhete, Nhanhã pôs as mãos na cabeça:
- Quando eu digo
que tu não tens a menor parcela de bom-senso…! Aí está! Dez mil réis deitados
fora, e tanta coisa falta nesta casa!…
E seguiu-se,
durante meia hora, a relação dos objetos que poderiam ser comprados com aqueles
dez mil-réis perdidos.
Depois disso,
Nhanhã pediu para ver o bilhete.
Reginaldo, sem
proferir uma palavra, tirou-o do bolso e entregou-lho.
- Número 345!
exclamou ela. Um número tão baixo numa loteria de cinquenta mil números! Isto é
o que se chama vontade de gastar dinheiro à toa! Algum dia viste, nessas
grandes loterias, ser premiado um número de três algarismos?
Reginaldo
confessou que nem sequer olhara o número. Como o garoto se lhe afigurou a
fortuna disfarçada, ele aceitou o bilhete que lhe fora oferecido, entendendo
que não devia argumentar com a fortuna.
- 345! Pois isto
lá é número que se compre!
- Agora não há
remédio.
- Como não há
remédio? Põe o chapéu e volta imediatament ao Largo do Machado; o garoto ainda
lá deve estar. Dá-lhe o bilhete e ele que te dê o dinheiro.
- Perdoa, Nhanhã,
mas isso não faço eu: comprei! Nem o garoto desfaria a compra!
- Ao menos vai
trocar o bilhete por outro, que tenha, pelo menos, quatro algarismos! Se tiver
cinco, melhor!
- Faço-te a
vontade: mas olha que sempre ouvi dizer que bilhete de loteria não se trocam…
- Faze o que eu
disse e não resmungues! Tu és o rei dos caiporas, e eu tenho muita sorte!
Reginaldo não
disse mais nada: pôs o chapéu, saiu de casa, foi ao Largo do Machado, e voltou
com outro bilhete.
Desta vez o número
tinha cinco algarismos: 38.788, Nhanhã devia ficar satisfeita.
Não ficou:
- Devias escolher
um número mais variado: o 8 fica aqui três vezes… Mas, enfim, 38.788 sempre
inspira mais confiança que 345…
Pois, senhores, no
dia seguinte o nº 38.788 saiu branco, e o nº 345 foi premiado com a
sorte grande.
Imagine-se o
desespero de Nhanhã:
- Então, eu não
disse que és o rei dos caiporas?
- Perdoa, Nhanhã,
mas desta vez não fui o rei: tu é que foste a rainha…
- Cala-te! Se não
fosses um songamonga, não me terias feito a vontade! Ter-me-ias roncado
grosso!
- Ora essa!
- Um marido não se
deve deixar dominar assim pela mulher!
- Olha que eu pego
na palavra…
- Trocar um
bilhete de loteria! Que absurdo…
- Absurdo
aconselhado por ti…
- Mas tu já não
estás em idade de receber conselhos!
- Bom; de hoje em
diante baterei com o pé e roncarei grosso todas as vezes que me
contrariares! Esta casa vai cheirar a homem!…
- A boas horas vêm
esses protestos de energia!
E exclamando com
os punhos cerrados e os olhos voltados para o teto: “Cem contos de réis!”,
Nhanhã deixou-se cair sentada numa cadeira, e desatou a chorar.
(Artur Azevedo. Histórias
Brejeiras. Rio de Janeiro, Edições de Ouro, 1966)
Use sempre um
dicionário da língua portuguesa quando tiver dúvidas sobre o sigificado das
palavras.
Agora, responda às
questões abaixo.
A. No texto
aparece o adjetivo cerrados, que não pode ser confundido com serrados.
Preencha as lacunas das frases com cerrado(s, a, as) ou serrado(s, a,
as) adequado.
1. Esses
madeireiros fazem tanto barulho que é preciso deixar portas e janelas
______________
2. O pior não é
isso. Ontem contei cem árvores __________________
3. Mesmo com os
olhos _______________ vejo a destruição.
4. É mesmo. Até meu
coracão parece que foi ________________
5. E quem dirá
depois que aqui havia uma floresta __________________ e altaneira?
6. É isso.
Floresta ________________ existirá apenas em fotografia.
B. Explique o
sentido das expressões abaixo de acordo com o texto:
1 – por as mãos na
cabeça
2 – saiu branco
3 – roncar grosso
4 – bater com o pé
C. No texto, a
palavra conto significa determinado valor monetário. Qual o significado
dessa palavra em cada uma das frases abaixo?
Genival das Cruzes
perdeu dez mil reais porque acreditou na conversa de dois desconhecidos que lhe
aplicaram o conto do bilhete premiado.
2. Já está
nas livrarias o mais recente livro de Ludovico Pinheiro, intitulado “Contos
Inesquecíveis”.
D. Artur de
Azevedo começa o texto informando que Reginaldo tinha aversão ao jogo. Como se
explica, então, a compra do bilhete?
E. Reginaldo já
esperava que Nhanhã desaprovasse o gasto de dez-mil réis, pois:
a. ( )
o bilhete era de número muito baixo.
b. ( )
o dinheiro destinava-se a outras despesas.
c. ( )
a mulher sempre reprovava os atos do marido.
d. ( )
o marido queria desafiar a mulher.
F. Quando Nhanhã
mandou que trocasse o bilhete, Reginaldo esboçou certa resistência. Por quê?
G. Quando soube do
resultado da extração da loteria, Nhanhã culpou o marido pelo insucesso. Na sua
opinião o marido teve culpa? Justifique sua resposta.
H. Baseado no
texto dê características de:
1. Nhanhã
2. Reginaldo
I. As constantes
discussões do casal ocorriam, sem dúvida, por culpa de ambos os cônjuges. Na
sua opinião, qual deles é mais culpado? Justique com argumentos coerentes.
________________________________________________________________
GABARITO
Questão A.
1. Esses
madeireiros fazem tanto barulho que é preciso deixar portas e janelas cerradas.
2. O pior não é isso.
Ontem contei cem árvores serradas.
3. Mesmo com os
olhos cerrados vejo a destruição.
4. É mesmo. Até
meu coracão parece que foi serrado.
5. E quem dirá
depois que aqui havia uma floresta cerrada e
altaneira?
6. É isso.
Floresta cerrada existirá apenas em fotografia.
Questão B.
1 – por as mãos na
cabeça: ficar desesperado, sem saber o que fazer diante
de algo que aconteceu
2 – saiu branco: diz-se de um bilhete que não foi premiado
3 – roncar grosso:
fazer valer os seus direitos e prerrogativas de líder
4 – bater com o
pé: decidir sem levar em consideração as outras
opiniões.
Questão C.
Enganar
alguém para vender um falso bilhete premiado.
Pequenas
histórias literárias reais ou fictícias escritas por escritores ou pessoas que
se dedicam à literatura.
Questão D.
Por
causa da insistência do garoto, ele achou que era um ente sobrenatural que
estava lhe oferecendo a oportunidade de ficar rico, ou de ganhar uma quantia em
dinheiro bastante alta.
Questão E. Alternativa C
Questão F.
Por
causa da sua convicção de que o bilhete era premiado mesmo.
Questão G. Resposta individual.
Questão H.
autoritária,
grosseira no trato com o marido, pessoa que não assume seus erros e defeitos
submisso,
leal, educado, obediente
Questão I.
Resposta
individual
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