ANTEONTEM
Carla Dias
Anteontem,
eu sonhei que havia partido, mas não para todo o sempre, pela
eternidade afora. Eu havia partido com um sorriso estranho nos olhos e o
tempo a tiracolo, pronto para me mostrar o caminho de volta, quando ele
tivesse vontade.
Ao meu lado ninguém e nada, a imensidão das coisas, a amplidão dos sentimentos. Pisando em horas envaidecidas de tanta fascinação pelo silêncio. Horas adoram o silêncio. E o silêncio é o amante secreto da hora inexata na qual o certo desacontece.
Nenhuma palavra saindo da minha boca. Cada sentido no seu canto, feito espectador do som em forma de fado. Jamais atravessavam meu caminho as solidões cultivadas no diariamente. Jamais antes de anteontem.
No meu sonho eu era - além de temente aos acalantos dos trovões - uma fazedora de sei lá o quê. Assumida tal função, eu vivia trançando verdades, alimentando segredos inexistentes. Tudo era uma questão de cenário, ainda que a minha volta: nada. Ninguém.
E houve essa noite em que me senti tão cansada que pensei que se parasse jamais me levantaria novamente. Arrastei-me por quilômetros de inseguranças. Alavanquei vicissitudes desmedidas e acompanhei uma orquestra de saudades, mas aos prantos.
Enchi o mar de dolência cultivada. Brotaram espelhos d’água, e eu me vi ao avesso, reflexo surrealista.
Que o desejo soprou meus cabelos, e embora caminhando tão lentamente, como em cena de filme em preto e branco, slow motion, a língua desandou a dizer palavras inventadas, louca por criar um dialeto para lhe fazer companhia, depois de séculos de autodesentendimento. E muros se tornaram pontes. Casas vazias se transformaram em varandas amparadas por paisagens que, anteontem, encontravam-se escondidas por deuses. O impossível se transformou em mãos dadas ao toque da tolerância, da justiça. Apelidou-se possibilidade, fez-se avatar se dobrando ao afago do vento.
Deuses gostam de brincar de gente, por isso jogam nossos corações para lá e para cá, pinguepongueando nossos sentimentos. Sentam-se à beira dos seus paraísos e parafraseiam personagens de reality shows. Deuses querem brincar de gente, contanto que possam voltar para casa, como um milhão e sei lá quantos milhares de homens e mulheres jamais voltarão, após empunharem armas em guerras das quais não compreendem a biografia. Das quais o sentido faz sentido nenhum.
Anteontem eu sonhava em juntar dinheiro para comprar uma casa. Nessa casa moraríamos eu e meus absolutismos frágeis. Não tenho amante, marido ou filhos, tampouco herança para deixar a quem. Mas um lar de minha propriedade marcaria minha história nos formulários do imposto de renda. A prova cabal de que existi. E permitiria aos que me procurassem, quando fosse tarde demais para haver presença minha neste planeta, que encontrassem ao menos o resquício da minha existência burocrática.
Porém eu não existia até anteontem. Passos leves demais, voz contida de um tanto, engolindo desejos e celebrações e ganhos e despedidas e toda aquela timidez em gritar necessito de!
Anteontem me colocou para caminhar nessa trilha, alardeando que, se alguém quisesse me seguir, alcançar-me, segurar minha mão da vida à morte à vida ao rumo de todas aquelas perguntas sem respostas, agora é a hora.
Aceita um pouco de mim?
Anteontem eu sonhei que me partiram ao meio e me transformei em dois distintos continentes. Às vezes, dormia em um deles e, noutras vezes, acampava em outro. Em um me chamavam mãe, no outro, pai. Havia também os que teimavam em tentar me emendar, mas confesso que apreciava o oceano que me dividia, e os dias em que não fazia diferença de que lado estava, pois era um dia inteiro sem sentir falta de.
Anteontem me lançou ao agora. E me sinto tão fria, a pele arrepiada, batendo os dentes. O bafo do sol em quarenta graus de destempero, mas meu sangue congela. Fria como aqueles que tomam as decisões mais importantes sem se aterem ao que se perde nessa escolha. Quantos ideais e verdades, quantas vidas.
Volto para casa, desabitada de sinfonias ou do alvoroço dos shows de rock’n roll. Desamparada pelos significados conhecidos. A alma co-habitada pela ignorância sobre rotas de fuga. De certa forma vazia, feito folha em branco esperando palavras. Pronta para sabe-se lá o quê.
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