segunda-feira, 29 de agosto de 2016

LEITURA E INTERPRETAÇÃO DO TEXTO - FRAGMENTO DE ROMANCE - E AGORA, FILHA? 9º ANO

TEMA: ASSUMINDO RESPONSABILIDADES: O SONHO E A REALIDADE
FRAGMENTO DE ROMANCE
E AGORA, FILHA?
[...]
Felizmente a praça estava deserta. Jana sentou num banco perto do coreto para recompor as emoções antes de chegar à academia. Esse banco, essa praça, esse céu azul de abril lhe traziam à memória outra época, quando a gravidez inesperada virou seus sonhos do avesso e encerrou precocemente sua carreira de bailarina. Tinha catorze anos apenas. Dois a mais que a idade atual da filha. Fechando os olhos, Jana quase podia ver a cigana se aproximando para ler-lhe a mão e ouvi-la fazer o vaticínio que mudaria a sua vida:
- Menina bonita, vejo-a ocupando o centro de uma cena. Todas as atenções estão voltadas para você.
Na hora Jana se alegrou, certa de que a mulher se referia à montagem de Romeu e Julieta, na qual sonhava fazer o papel principal. Mas a cigana fez um gesto ambíguo de quem não podia oferecer garantias e concluiu a predição com uma frase cifrada, cujo sentido só meses depois ela viria a descobrir:
- Você é a estrela, mas uma estrela trágica. Vai viver um grande e desastrado amor... – Fez um pequeno suspense, então finalizou: - E esse amor vai dar um fruto.
Um fruto! O fruto não se revelou ser o sucesso no palco, ou ingresso num grupo de balé profissional, prêmio para anos de estudo e disciplina, como interpretou a princípio. O fruto era Gabi. Essa criaturinha que entrou em seus dias pela porta da frente e ocupou-os todos, exigentes, meiga, inteligente, alegre, uma princesinha. Desde então só para ela tinha vivido.
Jana saiu do torpor de seus pensamentos e olhou à volta, assustada. Bem que gostaria de ouvir de novo a cigana, para agir com acerto em relação à filha! Mas não havia mais ciganos na praça, o progresso os expulsara para longe e o coreto, sujo e descascado, era ocupado por mendigos. Nas quadras ao redor, em vez do sossego do passado, havia viadutos e altos edifícios. Como todas as cidades do interior se São Paulo, Rio Largo havia crescido muito.
Para chegar à academia de dona Marly agora era preciso atravessar uma avenida de pista dupla. Jana consultou o relógio e pôs-se a caminho. A aula de Gabi estava no fim e queria surpreendê-la na saída. Isto é, se Gabi estivesse na aula, e não na garupa de uma moto, como a mãe dela fazia treze anos antes, driblando a vigilância dos avós para passear no campo com Ivan, seu pai. Por um instante, Jana teve a impressão de vê-lo como uma miragem. Não o Ivan de hoje, respeitável senhor na faixa dos trinta anos, grisalho, casado e pai de outros dois filhos, mas seu amor adolescente, com os cabelos revoltos pelo vento da moto, despedindo-se dela com um beijo nessa mesma esquina.
“Como o tempo passa voando!”, pensou Jana, surpreendida, porém sem amargura. Enquanto andava, as cenas desses anos lhe vinham em flashes, como num filme. O abandono de Ivan, o estupor inicial, a decisão de ter o bebê sozinha. A discriminação que sofreu por ser mãe aos quinze anos, a gravidez solitária, o afastamento dos amigos. O desgosto do pai, sua vergonha, seu mutismo. A ajuda da mãe e de Lurdes, a solidariedade da tia Lígia. Perdera anos de estudo e só se formou na faculdade graças à tia, que lhe pagou o curso e a manteve na casa dela em São Paulo, na fase mais dura de sua vida.
Foram muitas viagens a Rio Largo, vinha ver a filha todos os finais de semana, quatrocentos quilômetros de ônibus, exausta de estudar à noite e, de dia, lecionar inglês. Mas tudo isso eram águas passadas, o esforço tinha valido a pena. Há quatro anos Jana vivia com Gabi num apartamento só delas, como sempre quis. Desistiu de montá-lo em São Paulo, sua ideia inicial, pois a menina nessa altura já estava habituada a Rio Largo, a vida na capital com uma criança não era fácil e, sobretudo, surgiu-lhe a chance de um emprego numa grande empresa da região. Graças ao seu inglês perfeito, Jana trabalhava como secretária de diretoria e podia pagar as prestações do apartamento, cuja entrada fora presente do pai e da tia Lígia.
Tudo estava bem, enfim. E se o sonho de dançar foi esquecido, parecia que Gabriela ia realizá-lo em seu lugar. Tão talentosa quanto a mãe na idade dela, a menina iniciou os estudos pequenina, e por iniciativa própria. Foi Gabi quem pediu à avó para colocá-la na academia de dona Marly, tradicional escola de balé de Rio Largo. Jana ficou inchada de orgulho na primeira vez em que viu a filha dançar. Era uma apresentação do baby class, Gabi tinha seis anos, e ela não pôde controlar as lágrimas.
- Não chora, mãe! – A menina passou os bracinhos à volta do pescoço dela, dengosa. – Você não quer que eu seja bailarina como você era? Eu via a tia Talita dançar no teatro e quando crescer quero ser igual a ela.
Jana se emocionou ainda mais. Talita, sua melhor amiga, a única a não lhe virar as costas quando ficou grávida... Talita a substituiu em Romeu e Julieta – com o barrigão de sete meses era impossível dançar – e acabou chegando onde Jana queria: era bailarina profissional. Quando Gabi tinha quatro anos, levou-a ao Municipal de São Paulo para ver uma apresentação de Talita. Gabi ficara maravilhada.
- Quando você crescer poderá ser o que quiser – disse Jana na época. – Mas, se for bailarina, não nego que vou adorar! [...]
VIEIRA, Isabel. E agora, filha? São Paulo: Moderna, 2003, p. 13-17. (Fragmento).

GLOSSÁRIO
Coreto: pavilhão em praça pública para concertos de bandas de música.
Precocemente: antes do tempo.
Vaticínio: profecia.
Predição: previsão do que vai acontecer no futuro.
Cifrada: linguagem obscura.
Torpor: apatia.
Estupor: imobilidade súbita diante de algo que não se espera.
Mutismo: mudez.
REFLETINDO SOBRE O TEXTO
1. Com quantos anos Jana engravidou?
2. Foi uma gravidez planejada? Que palavras do primeiro parágrafo podem justificar a sua resposta?
3. Foi uma profecia que mudou a vida de Jana ou foram suas próprias atitudes, antes mesmo de ouvir a profecia?
4. Ao ouvir a profecia da cigana, o que Jana imaginou que iria acontecer?
5. Qual foi o verdadeiro significado da profecia da cigana?
6. Quem é o pai de Gabi? Ele, Jana e Gabi vivem juntos? Em que parte do texto você se baseou para dar essa resposta?
7. Como reagiram as pessoas à volta de Jana depois que ela soube estar grávida e antes de Gabi nascer? Como Jana se sentiu?
8. Depois do nascimento de Gabi, quem ajudou Jana?
9. O que Jana teve que fazer para poder concluir os estudos depois do nascimento da filha?
10. Como está a vida de Jana no momento em que se passa a narrativa? Que partes do texto indicam isso?
11. Qual a importância de Jana ter concluído os estudos para que ela e Gabi estejam vivendo dessa forma quando Jana conta sua história?
12. Que sonho Jana teve de abandonar?

13. Este é um texto de ficção, mas você acha que ele reproduz uma situação que poderia ter acontecido na realidade? Por quê?

FONTE: FIGUEIREDO, Laura de; BALTHASAR, Marisa; GOULART, Shirley. Singular & Plural: leitura, produção e estudos de linguagem. São Paulo: Moderna, 2012.

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