LEITURA E INTERPRETAÇÃO DO TEXTO - FRAGMENTO DE ROMANCE - E AGORA, FILHA? 9º ANO
TEMA:
ASSUMINDO RESPONSABILIDADES: O SONHO E A REALIDADE
FRAGMENTO
DE ROMANCE
E AGORA, FILHA?
[...]
Felizmente a
praça estava deserta. Jana sentou num banco perto do coreto para recompor as emoções antes de chegar à academia. Esse
banco, essa praça, esse céu azul de abril lhe traziam à memória outra época,
quando a gravidez inesperada virou seus sonhos do avesso e encerrou precocemente sua carreira de bailarina.
Tinha catorze anos apenas. Dois a mais que a idade atual da filha. Fechando os
olhos, Jana quase podia ver a cigana se aproximando para ler-lhe a mão e
ouvi-la fazer o vaticínio que
mudaria a sua vida:
- Menina bonita,
vejo-a ocupando o centro de uma cena. Todas as atenções estão voltadas para
você.
Na hora Jana se
alegrou, certa de que a mulher se referia à montagem de Romeu e Julieta, na
qual sonhava fazer o papel principal. Mas a cigana fez um gesto ambíguo de quem
não podia oferecer garantias e concluiu a predição
com uma frase cifrada, cujo sentido
só meses depois ela viria a descobrir:
- Você é a
estrela, mas uma estrela trágica. Vai viver um grande e desastrado amor... –
Fez um pequeno suspense, então finalizou: - E esse amor vai dar um fruto.
Um fruto! O
fruto não se revelou ser o sucesso no palco, ou ingresso num grupo de balé
profissional, prêmio para anos de estudo e disciplina, como interpretou a
princípio. O fruto era Gabi. Essa criaturinha que entrou em seus dias pela porta
da frente e ocupou-os todos, exigentes, meiga, inteligente, alegre, uma
princesinha. Desde então só para ela tinha vivido.
Jana saiu do torpor de seus pensamentos e olhou à
volta, assustada. Bem que gostaria de ouvir de novo a cigana, para agir com
acerto em relação à filha! Mas não havia mais ciganos na praça, o progresso os
expulsara para longe e o coreto, sujo e descascado, era ocupado por mendigos.
Nas quadras ao redor, em vez do sossego do passado, havia viadutos e altos
edifícios. Como todas as cidades do interior se São Paulo, Rio Largo havia
crescido muito.
Para chegar à
academia de dona Marly agora era preciso atravessar uma avenida de pista dupla.
Jana consultou o relógio e pôs-se a caminho. A aula de Gabi estava no fim e
queria surpreendê-la na saída. Isto é, se Gabi estivesse na aula, e não na
garupa de uma moto, como a mãe dela fazia treze anos antes, driblando a
vigilância dos avós para passear no campo com Ivan, seu pai. Por um instante,
Jana teve a impressão de vê-lo como uma miragem. Não o Ivan de hoje,
respeitável senhor na faixa dos trinta anos, grisalho, casado e pai de outros
dois filhos, mas seu amor adolescente, com os cabelos revoltos pelo vento da
moto, despedindo-se dela com um beijo nessa mesma esquina.
“Como o tempo
passa voando!”, pensou Jana, surpreendida, porém sem amargura. Enquanto andava,
as cenas desses anos lhe vinham em flashes, como num filme. O abandono de Ivan,
o estupor inicial, a decisão de ter
o bebê sozinha. A discriminação que sofreu por ser mãe aos quinze anos, a
gravidez solitária, o afastamento dos amigos. O desgosto do pai, sua vergonha,
seu mutismo. A ajuda da mãe e de
Lurdes, a solidariedade da tia Lígia. Perdera anos de estudo e só se formou na
faculdade graças à tia, que lhe pagou o curso e a manteve na casa dela em São
Paulo, na fase mais dura de sua vida.
Foram muitas
viagens a Rio Largo, vinha ver a filha todos os finais de semana, quatrocentos quilômetros
de ônibus, exausta de estudar à noite e, de dia, lecionar inglês. Mas tudo isso
eram águas passadas, o esforço tinha valido a pena. Há quatro anos Jana vivia
com Gabi num apartamento só delas, como sempre quis. Desistiu de montá-lo em
São Paulo, sua ideia inicial, pois a menina nessa altura já estava habituada a
Rio Largo, a vida na capital com uma criança não era fácil e, sobretudo,
surgiu-lhe a chance de um emprego numa grande empresa da região. Graças ao seu
inglês perfeito, Jana trabalhava como secretária de diretoria e podia pagar as
prestações do apartamento, cuja entrada fora presente do pai e da tia Lígia.
Tudo estava bem,
enfim. E se o sonho de dançar foi esquecido, parecia que Gabriela ia realizá-lo
em seu lugar. Tão talentosa quanto a mãe na idade dela, a menina iniciou os
estudos pequenina, e por iniciativa própria. Foi Gabi quem pediu à avó para
colocá-la na academia de dona Marly, tradicional escola de balé de Rio Largo.
Jana ficou inchada de orgulho na primeira vez em que viu a filha dançar. Era
uma apresentação do baby class, Gabi
tinha seis anos, e ela não pôde controlar as lágrimas.
- Não chora,
mãe! – A menina passou os bracinhos à volta do pescoço dela, dengosa. – Você não
quer que eu seja bailarina como você era? Eu via a tia Talita dançar no teatro
e quando crescer quero ser igual a ela.
Jana se
emocionou ainda mais. Talita, sua melhor amiga, a única a não lhe virar as
costas quando ficou grávida... Talita a substituiu em Romeu e Julieta – com o
barrigão de sete meses era impossível dançar – e acabou chegando onde Jana
queria: era bailarina profissional. Quando Gabi tinha quatro anos, levou-a ao
Municipal de São Paulo para ver uma apresentação de Talita. Gabi ficara
maravilhada.
- Quando você
crescer poderá ser o que quiser – disse Jana na época. – Mas, se for bailarina,
não nego que vou adorar! [...]
VIEIRA,
Isabel. E agora, filha? São Paulo: Moderna, 2003, p. 13-17. (Fragmento).
GLOSSÁRIO
Coreto: pavilhão em praça pública para
concertos de bandas de música.
Precocemente: antes do tempo.
Vaticínio: profecia.
Predição: previsão do que vai acontecer
no futuro.
Cifrada: linguagem obscura.
Torpor: apatia.
Estupor: imobilidade súbita diante de
algo que não se espera.
Mutismo: mudez.
REFLETINDO SOBRE O
TEXTO
1.
Com quantos anos Jana engravidou?
2.
Foi uma gravidez planejada? Que palavras do primeiro parágrafo podem justificar
a sua resposta?
3.
Foi uma profecia que mudou a vida de Jana ou foram suas próprias atitudes,
antes mesmo de ouvir a profecia?
4.
Ao ouvir a profecia da cigana, o que Jana imaginou que iria acontecer?
5.
Qual foi o verdadeiro significado da profecia da cigana?
6.
Quem é o pai de Gabi? Ele, Jana e Gabi vivem juntos? Em que parte do texto você
se baseou para dar essa resposta?
7.
Como reagiram as pessoas à volta de Jana depois que ela soube estar grávida e
antes de Gabi nascer? Como Jana se sentiu?
8.
Depois do nascimento de Gabi, quem ajudou Jana?
9.
O que Jana teve que fazer para poder concluir os estudos depois do nascimento
da filha?
10.
Como está a vida de Jana no momento em que se passa a narrativa? Que partes do
texto indicam isso?
11.
Qual a importância de Jana ter concluído os estudos para que ela e Gabi estejam
vivendo dessa forma quando Jana conta sua história?
12.
Que sonho Jana teve de abandonar?
13.
Este é um texto de ficção, mas você acha que ele reproduz uma situação que
poderia ter acontecido na realidade? Por quê?
FONTE: FIGUEIREDO, Laura de; BALTHASAR, Marisa; GOULART, Shirley. Singular & Plural: leitura, produção e estudos de linguagem. São Paulo: Moderna, 2012.
Nenhum comentário:
Postar um comentário