segunda-feira, 22 de agosto de 2016

CRÔNICA
Se não me falha a memória
Memória boa tinha aquele velho. Correu os olhos pelo cartório onde eu era escrivão e veio direto à minha mesa:
- Sr. Escrivão, meus respeitos - fez um salamaleque: - Queria que o senhor me desse informações sobre um inventário.
- Às suas ordens - e retribuí o cumprimento: - Inventário de quem?
- Já lhe digo o nome do falecido. Minha memória ainda é das melhores - apesar de ter sofrido uma comoção cerebral há poucos dias, ainda não estou inteiramente bom. Espera aí, deixa eu ver... Sou advogado há mais de quarenta anos, não esqueço o nome de um constituinte, vivo ou morto. Hoje em dia... Benvindo!
- Como?
- O nome do falecido era Benvindo. Isto! Benvindo Lopes. Marido da minha cozinheira. Faleceu há pouco tempo. Ela já não está boa da cabeça e se eu não me lembrasse o nome do marido dela, quem é que haveria de lembrar? Levindo Lopes.
- O senhor disse Benvindo. - Eu disse Benvindo? Veja o senhor!
- É Levindo ou Benvindo?
Ele ficou pensativo um instante:
- Benvindo seja - respondeu afinal, muito sério.
Depois de verificar no fichário, expliquei-lhe que deveria trazer uma petição. O velho agradeceu e saiu, assegurando-me que sim, não esqueceria. Nem dez minutos haviam decorrido e tornou a surgir na porta:
- Sr. Escrivão, já que o senhor ainda há pouco foi tão amável, e sem querer abusar, posso lhe pedir uma informação? É sobre um inventário, esqueci de lhe dizer. Minha memória é muito boa, mas sofri há dias uma comoção cerebral...
- O senhor me disse - sorri-lhe, solícito: - Qual é o inventário, desta vez?
- Inventário de... de... Não vê o senhor? A minha cozinheira... O marido dela.
- Benvindo Lopes?
- Isso! Benvindo Lopes. Como é que o senhor sabe?
- O senhor já me tinha dito.
- Mas sim senhor! Vejo que também tem boa memória.
Tornei a explicar-lhe a mesma coisa, isto é, que deveria trazer uma petição. Não esquecesse.
- Não, não me esqueço.
Agradeceu e se afastou. Deteve-se a meio caminho da porta.
- Veja o senhor! Já ia me esquecendo é do motivo principal que me trouxe aqui: a minha cozinheira, que está mais velha do que eu, perdeu o marido há pouco tempo e estou cuidando do inventário dele...
- Sabe o nome do falecido? - perguntei, sem me alterar.
- Como não? Minha memória ainda funciona, para nomes então, principalmente. Ora, pois. É Levindo não sei o quê...
- Não será Benvindo?
- Isso! Benvindo... Benvindo Lopes, se não me engano.
- Este nome não me é estranho - limitei-me a murmurar.

(Sabino, Fernando. In Para gostar de ler. Ed. Ática)
Após ler o texto, responda:

1.O texto está narrado em 1ª ou 3ª pessoa? Justifique sua resposta transcrevendo um trecho do texto.
2.A atitude irônica do narrador ao se referir ao homem que entra no cartório revela-se no seguinte trecho:
(   ) “Ele ficou pensativo um instante.”        
(   ) “Memória boa tinha aquele velho.”
(   ) “ Tornei-lhe a explicar a mesma coisa.”
(   ) “”Perguntei, sem me alterar.”
3. Por que o homem procurou o cartório?
4. A que o homem atribuiu sua falta de memória?
5. As reticências que aparecem na fala do homem sugerem que ele era:
 (  ) confuso            (   ) esquecido      (   ) gago    (    ) indeciso
6. A fala final do narrador sugere que ele:
(    ) conformou-se com a situação.
(    ) esqueceu o nome do homem.
(    ) lembrou-se do inventário.
(    ) perdeu o fichário..
7. O tema central dessa crônica é
(    ) dificuldade de comunicação entre as pessoas.
(    ) o inventário de Benvindo Lopes.
(    )  a inconveniência da perda de memória.
(   ) as doenças mentais.

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